Religião e Sexo
- at JUNHO 7, 2014
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G. K. Chesterton
Traduzido por Antonio Emilio Angueth de Araujo
O homem honesto que diz que deseja que o cristianismo seja meramente prático e não teórico ou teológico, raramente consegue explicar o que ele exatamente quer dizer. Essa é a razão de haver tanta repetição simplesmente verbal no que ele diz. Geralmente, os pobres teóricos e teólogos têm de explicá-lo o que ele quer dizer. De qualquer forma, ele quer dizer algo mais ou menos assim. Um número muito grande de pessoas saudáveis e bondosas é, hoje, oportunista. Todos acreditamos que devemos cortar nosso casaco de acordo com o tecido que temos, no sentido de que ninguém pode fabricar um casaco sem tecido. Mas se o costureiro me diz que todo o tecido em estoque é amarelo-mustarda brilhante, decorado com caveiras escarlates, terei de adiar o quanto puder o uso desse tecido para meu novo casaco, podendo até constranger-me, e ao costureiro, sugerindo-lhe procurar outro tipo de tecido.
Contudo, há um tipo de homem que usará prontamente o casaco amarelo pela simples existência do casaco amarelo. Ele é um oportunista num sentido diferente do meu. Há uma diferença entre um cliente que consegue o que quer, tanto quanto lhe seja possível e aquele que consegue o que não quer porque isso lhe é possível.
Em outras palavras, há uma diferença entre conseguir o que se quer, sob certas condições e permitir que as condições lhe digam o que você pode conseguir, ou mesmo o que você quer. No entanto, é possível passar pela vida sendo controlado pelas circunstâncias dessa forma. Se minha quadra de tênis for inundada, posso, claro, transformá-la num lago ornamental. Ou posso me dar o trabalho de drenar o campo e protegê-lo contra inundações, permanecendo fiel ao ideal abstrato e dogmático de uma quadra de grama. Se uma árvore cai sobre minha casa e faz um buraco no teto, posso transformar o buraco numa clarabóia e a árvore numa saída de emergência. Mas se eu não quiser uma clarabóia e uma saída de emergência, estou sendo manipulado pela árvore. E isso é uma posição indigna para um homem.
É a posição indigna da maioria dos homens modernos. Eles são oportunistas, não só no sentido de conseguirem o que querem da forma mais prática, mas de tentarem querer a coisa mais prática; isto é, meramente a coisa mais fácil. Essa é a razão de eles não entenderem a base do idealismo cristão em muitas questões e especialmente na questão do sexo. Eles estão sempre sendo desviados pelas inundações e árvores caídas, especialmente aquela árvore do conhecimento que é o símbolo da queda e que certamente fez um buraco na casa, no sentido do lar. Mas a questão aqui é que essas pessoas constroem um novo plano ou propósito sexual depois de cada eventual novo acontecimento. Quando há mais mulheres do que homens, eles começam a falar sobre poligamia. Quando há mais crianças do que é conveniente para os indivíduos criarem com um salário decente, eles começam a falar de alguns truques que são um tipo de substituto para o infanticídio.
Ninguém pode entender a teoria do sexo cristã sem entender a idéia do homem ter um plano que ele deseja impor sobre as circunstâncias, ao invés de esperar pelas circunstâncias para então ver que plano ele vai ter. O cristão deseja criar as condições para que o casamento cristão seja possível e digno em si; não aceitar qualquer coisa possível nas mais indignas condições. Porque ele o quer e o que ele realmente é, consideraremos num momento; mas é necessário tornar claro de início que o casamento cristão não é algo que nos é sugerido pelas condições sociais do nosso entorno; é algo que nos é sugerido por Deus, pela nossa consciência comum e pelo sentido de honra da humanidade em geral. E isso é o que nosso pobre amigo quer dizer quando diz que nós não somos práticos; ele quer dizer que nós não estamos sempre consertando nossa casa e alterando nosso jardim para acolher em seu interior uma árvore caída ou uma tromba d’água.
Ele quer dizer que temos um plano para nossa casa e jardim e que estamos sempre tentando restaurá-los e reconstruí-los de acordo com o plano. Não propomos rasgar o plano original e seguir uma seqüência de acidentes; até que a casa seja enterrada sob árvores caídas e os campos sejam inundados e todo o trabalho do homem seja levado pela enxurrada. Isso é o que ele entende por nossa impraticabilidade, e ele está certo.
Descrito em termos humanos, o plano é substancialmente este. Que o amor que faz a juventude bela, e é a fonte natural de tanta canção e romance, tem por objetivo final um ato de criação, a fundação da família. Ao mesmo tempo em que é um ato criativo, como o de um artista, é também um ato coletivo, como o de uma pequena comunidade. É, talvez, o único trabalho artístico em que a colaboração é um sucesso e mesmo uma necessidade. É preciso de dois para começar uma briga, especialmente uma briga de amantes. Precisa-se também de dois para estabelecer um acordo de amantes segundo o qual seu amor deve ser colocado acima da briga. Mas, por definição, o acordo dos dois não é simplesmente concernente aos dois; mas, num sentido terrível, a outros. A fundação de uma família, como todo ato criativo, é uma responsabilidade tremenda. Em outras palavras, a fundação de uma família significa a alimentação de uma família, o treinamento, o ensinamento e a proteção de uma família. É o trabalho de uma vida inteira, e muitos casamentos têm uma vida muito curta. Sua continuidade é garantida, não por “leis matrimoniais” que nossas modernas plutocracias podem criar ao seu bel-prazer, mas por um voto voluntário ou invocação a Deus feita pelas duas partes, que eles vão se ajudar nesse trabalho até a morte. Para aqueles que acreditam em Deus e também acreditam no significado das palavras, isso é final e irrevogável.
Esse ato criativo é em si um ato livre. Esse ato criativo, como todos os atos criativos, não envolve uma perda de liberdade. O homem que constrói uma casa não recupera aquele castelo que ele construiu e reconstruiu no ar quando ele estava planejando a casa. Nesse sentido, podemos dizer, se quisermos, que o homem que constrói uma casa, constrói uma prisão. Há algo de final em todo grande trabalho, mas é possível sentir nesse trabalho um tipo peculiar de finalidade. A paixão de um homem em sua juventude encontrou seu caminho verdadeiro e alcançou seu objetivo e, apesar do amor não precisar acabar, a busca por ele terminou.
Pelo teste desse objetivo e consecução, todas as coisas condenadas pela ética cristã se encaixa em seus vários níveis de erro. Prolongar a busca de uma forma sentimental, muito depois de ela ter qualquer relação com o trabalho real do homem é um erro em vários níveis; quase sempre isso não é mais que ridículo e indigno; turpe senilis amor. Permitir que a busca perambule de forma a destruir outros lares saudavelmente estabelecidos é, por essa definição, obviamente errado. Cultivar uma perversão mental que realmente remova o desejo por um ato frutífero é horrivelmente errado. Comprar um prazer estéril de uma classe estéril é errado. Manobrar cientificamente de forma a furtar o prazer sem assumir a responsabilidade pelo ato, é lógica e inerentemente errado. É como andar por aí com uma medalha sem ter ido à guerra.
Nós acreditamos, sem uma sombra de dúvida e hesitação, que onde as condições se aproximam desse ideal, a humanidade é mais feliz. Assim, o nascimento da paixão é usado com um menor grau de destruição. Assim, a morte da Paixão é aceita com um menor grau de desilusão. Um trabalho construtivo da idade adulta segue naturalmente o trabalho criativo da juventude; à paixão é dada uma extraordinária oportunidade de se perpetuar como afeição, e a vida do homem é tornada plena. Há nela tragédias, como há igualmente tragédias fora dela. Não podemos livrar a vida de tragédias sem livrá-la da liberdade. Não podemos controlar a atitude emocional dos outros nem numa condição de anarquia sexual, nem nas condições de lealdade doméstica. O amor é realmente excessivamente livre para os propósitos dos amantes livres. Mas onde os homens são treinados pela tradição a considerar esse processo normal, e a não esperar por nada diferente, há muito menos probabilidade de trágicos relacionamentos do que no amor chamado livre. Se observamos a literatura real do amor irresponsável, encontraremos um contínuo e dolorido lamento sobre falsas amantes e torturantes casos amorosos.
Em resumo, nós não acreditamos, de forma alguma, na grande felicidade prometida à humanidade pela dissolução de lealdades de uma vida toda; não sentimos o menor respeito pela retórica sentimental e grosseira com que isso nos é recomendado. Mas o resultado prático de nossa convicção e de nossa confiança é este: que quando as pessoas nos dizem – “Seu sistema não é muito inadequado para o mundo moderno,” respondemos – “Se isso é verdade, as coisas parecem bem podres no pobre e antigo mundo moderno.” Quando eles dizem – “Seu ideal de casamento pode ser um ideal, mas não pode ser uma realidade, ” dizemos – “é um ideal numa sociedade doente, é uma realidade numa sociedade saudável. Pois, onde ele é real, ele faz a sociedade saudável.” Não dizemos perfeitamente saudável, pois acreditamos em outras coisas além do casamento; como, por exemplo, na Queda do Homem. Mas a questão é que queremos o que é prático, no sentido de que queremos fazer algo, criar famílias cristãs. Mas eles só querem o que é prático, no sentido do que é mais fácil no momento.
Assim, de acordo com a teoria geral do casamento, a paixão é purificada por sua própria frutificação, quando esta frutificação é o seu dignificante e decente objetivo final. Em poucas palavras, podemos dizer que substituiríamos a meia-verdade do “amor pelo amor”, por uma verdade superior do “amor pela vida”. O amor é sujeito à leis porque é sujeito à vida. É verdade, não só metafisicamente, nem mesmo simplesmente num sentido místico, mas num sentido material, que podemos ter vida e que a podemos ter mais abundantemente. Isso não quer dizer, claro, que o amor não tenha seu próprio valor espiritual, quando honoráveis acidentes o impedem de ser frutífero. Mas isso não significa que, em geral, possamos julgar os amores dos homens por outra metáfora mística que é também um fato material e por seus frutos os conheceremos.
Tal princípio é, ou era até recentemente, compartilhado por todos os que se dizem cristãos. Há um apêndice a este princípio que é professado por todos os que se dizem católicos. É uma idéia mais mística; e talvez somente os católicos se esforçaram em defini-lo racional e filosoficamente. Não é verdade, contudo, que somente católicos já o sentiram. Os antigos pagãos já o sentiram sutilmente em suas visões de Atenas, Ártemis e das Virgens Vestais. Os agnósticos modernos o sentem debilmente em sua adoração pela inocência infantil – em Peter Pan ou no Child’s Garden of Verses. Essa idéia é a de que há, para alguns, uma felicidade ainda mais divina que a do divino sacramento do matrimônio. Este é um assunto muito especial e muito grande para ser tratado aqui; mas dois fatos deveras singulares devem, sobre ele, ser notados. Primeiramente, que os estados industriais modernos estão invocando o pesadelo da super-população, depois de terem, eles próprios destruído as irmandades monásticas que foram uma limitação voluntária e viril a esse pesadelo. Em outras palavras, eles estão, muito relutantemente, recorrendo ao controle de natalidade, depois de realmente suprimirem a prova de que os homens são capazes de auto-controle. Em segundo lugar, se tal abstenção fosse realmente exigida, essa tradição religiosa poderia dar a ela um entusiasmo positivo e poético, onde todas as outras fariam dela apenas uma mutilação negativa. Os católicos acreditam na razão e gostam de ver as coisas práticas provadas; e, atualmente, a necessidade não está provada; somente mencionada como se tivesse, como se comentassem a respeito de Darwin e Einstein. Mas, mesmo se ela estivesse provada, os católicos teriam uma resposta muito melhor do que a dos outros: as trombetas de São Francisco e São Domingos. E os bons protestantes irão finalmente concordar que a resposta é melhor do que a alternativa de um tipo de anarquia secreta e silenciosa, na qual os motivos são estreitos e os resultados nulos. E por este caminho, voltamos ao tema original do casamento ideal; e à verdade principal sobre ele. Uma coisa tão humana não irá, finalmente, desaparecer por entre acidentes de uma sociedade anormal. Essa sociedade nunca será capaz de julgar o casamento. O casamento julgará essa sociedade; e pode possivelmente condená-la.
O MEU AMIGO CHESTERTON
- at MAIO 10, 2014
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O MEU AMIGO CHESTERTON
Por António Leite da Costa
Publicado no site da Sociedade Chesterton Portugal
Uma sociedade entra em decadência, definitiva ou transitória, quando o sentido comum se torna pouco comum. G. K. C.
Há amigos que andaram connosco na escola, jogaram connosco à bola, estiveram ao nosso lado em inolvidáveis vitórias e sofreram derrotas, como todos nós, que gostaríamos de esquecer. Há amigos que começaram a fazer parte da nossa vida anos mais tarde, já no velho liceu ou nos bancos da universidade: partilharam a mesma mesa de café, entraram em discussões infindáveis e criaram uma tertúlia comum, comentando os mesmos jornais e revistas ou lendo autores e livros que ainda hoje relemos com um misto de reverência e de saudade. Há amigos que encontrámos no emprego, como se estivessem desde há muito à nossa espera, desejosos de conversar sobre os problemas do dia-a-dia, sobre as questões de trabalho, sobre os assuntos correntes e, mais ainda, sobre os assuntos contracorrente, aqueles de que ninguém mais fala e, para nós, falam mais fundo. Há, finalmente, aqueles amigos com quem nunca falámos pessoalmente ou até nunca vimos fisicamente ou, embora pareça impossível, nem sequer temos deles uma imagem definida e precisa. E, no entanto, são amigos verdadeiros, estão sempre disponíveis e nunca nos abandonam, a qualquer hora do dia ou da noite. Conversam connosco muitas vezes, em conversas prolongadas e atentas, sem berros nem alaridos, num murmúrio agradável, quase em silêncio, mas sempre alegres, amigas, familiares e fraternais. São os nossos autores, que fazem parte da nossa família espiritual, que connosco compartilham os bons e os maus momentos, custódios que estão sempre a nosso lado, esperando com paciência e sem pressa, que lhe peguemos na mão com se crianças fossem…Eles que tanto nos ensinam, tornam-se assim simples e humildes, naturalmente à nossa espera nessa prateleira reservada da nossa biblioteca e, por certo, sem o sabermos ou ouvirmos, em amena cavaqueira uns com os outros.
Os nossos autores são também nossos amigos. Amigos que nos acompanham pela vida fora, e que, ao contrário dos outros, de carne e osso e de corpo e alma, levamos connosco quando mudamos de casa ou na bagagem quando viajamos ou vamos de férias. Todos nós temos amigos destes, com quem gostamos de falar, lendo os seus livros, discutindo as suas ideias, aceitando os seus conselhos. Uns, lemos e relemos, de tempos a tempos, como que a pedir-lhes amparo e apoio, em momentos mais difíceis da nossa vida. Outros, parecem aqueles amigos que um dia desapareceram da nossa vida, mas não do nosso coração, e reencontramos, alegres e felizes, anos mais tarde, por mero acaso, se acaso o acaso existe.
Pois um dos meus melhores amigos é Gilbert Keith Chesterton – também conhecido como G. K. C. -, escritor inglês que nasceu em Londres em 1874 e faleceu em Beaconsfield em 1936. Não esperou por mim para nascer e quis Deus que já tivesse falecido quando meus pais me levaram à pia baptismal. Não nos cruzámos, por isso, fisicamente e durante alguns anos segui a minha vida, sem imaginar que haveria de estabelecer com ele laços de profunda amizade. Encontrei-o naturalmente numa livraria, no início dos anos sessenta do século passado. Trouxe-o logo para casa e acabámos a conversar os dois sobre o tema do bem e do mal. Não me recordo já em que dia da semana isso ocorreu. Mas lembro-me perfeitamente do título do livro: O Homem que era quinta-feira, numa edição da Portugália Editora. Também eu, como tantos, fui atraído por essa poderosa alegoria em que aparentemente se misturam os anarquistas com os defensores da ordem pública e que não é mais do que a refutação simbólica do maniqueísmo e a subtil defesa da unidade da natureza e da unidade divina. É conhecida a influência que exerceu sobre muitos intelectuais no século vinte e convém recordar que também deu origem a conversões. Por ela houve quem reencontrasse Cristo: foi o que sucedeu, em 2007, com a jornalista Dawn Éden, especialista em música “rock” e que abraçou a fé católica depois de ler esta obra.
Tornei a encontrar Chesterton ainda nos anos sessenta: Os disparates do mundo, numa edição da Livraria Morais Editora, com tradução e prefácio de José Blanc de Portugal. O título era também sugestivo e o texto seduzia da primeira à última página. Nunca se preocupando com o que estava na moda, pois esta é mais volátil do que o éter, trazia-me uma série de considerações aparentemente paradoxais mas sobretudo eivadas de um sólido e fino bom senso. O sentido do homem comum, que tem os pés bem assentes no chão e a cabeça bem presa no seu devido lugar, era assim vertido numa prosa que me agarrava com ambas as mãos e não mais me largava.
Já no início de setenta encontrei-me com ele em Ortodoxia, edição da Livraria Tavares Martins, do Porto, com um estudo-prefácio de João Ameal “A Revolução de Chesterton”. É, como sabemos, um dos livros fundamentais de G. K. C. e que tem uma história curiosa que penso não ser maçada recordar. Três anos antes da publicação de esta obra de referência, talvez hoje ainda mais do que em 1908, editou G. K. Chesterton um livro que causou grande polémica, o que era aliás de pleno agrado para o seu autor, intitulado Heretics (1905) – agora traduzido em português – e em que se criticavam, com vigor e humor, as opiniões religiosas do seu tempo que, curiosamente, em nada diferem das dos dias de hoje, desbravando assim o caminho para um claro e honesto debate sobre o fundamento do mundo contemporâneo. Nesta obra eram visadas as posições sobre esta matéria de alguns autores da moda como Rudyard Kipling, Bernard Shaw, H.G. Wells, George Moore, Lawes Dickinson, McCabe, entre outros, que se diziam ateus, embora como afirmava paradoxalmente Chesterton: “ Hoje, o próprio ateísmo é para nós demasiado teológico”. Ora, o crítico G. S. Street escreveu a propósito de Hereticsque não se ia preocupar com a sua teologia sem previamente saber qual era o pensamento do próprio Chesterton, em que é que ele afinal acreditava, desafiando-o a apresentar publicamente aquilo em que cria, os princípios que defendia, os valores pelos quais se batia. G. K. Chesterton nunca recusava um desafio; enfrentava-o e, normalmente, vencia-o. Assim nasceu Ortodoxia.
Numa recente edição inglesa ( Hodder and Stoughton, Ld, London, 1999), Philip Yancey conta na introdução que um jornalista perguntou a G.K.C. que livro levaria para uma ilha deserta, ao que este respondeu, com o seu inato sentido de humor e após um breve momento de reflexão: Why, A Practical Guide to Shipbuilding, of course. E acrescenta Philip Yancey que, tirando a Bíblia, ele levaria a Ortodoxia de Chesterton. De facto, esta é uma obra fundamental não só para compreender o pensamento chestertoniano mas, o mais espantoso, uma das melhores apologias do catolicismo escrita por um autor que, à data, ainda não era católico – recebeu o baptismo a 30 de Julho de 1922 -, embora descubra no Credo dos Apóstolos a explicação mais perfeita do insondável mistério da vida e da existência humanas. Do mistério que, como ele próprio diz, é a saúde do espírito. Outro aspecto relevante de esta obra, e que nem sempre é devidamente realçado, é a imediata influência que exerceu sobre alguns intelectuais ingleses que se acolheram, à Igreja Católica Romana, como Eric Gill, Dorothy L. Sayers, Theodore Maynard, escritor que teve um certo renome entre as duas guerras, e, muito provavelmente, Maurice Baring.
Foi também no decénio de setenta que li de Chesterton, ou, talvez melhor, com Chesterton, o S. Tomás de Aquino, com tradução e notas de António Álvaro Dória, numa edição –a terceira , de 1957 – da Livraria Cruz, de Braga. Corria então o ano de 1974. Assinalavam-se por todo o mundo culto os setecentos anos da morte do grande e sábio santo dominicano. Sem a mais leve suspeita do seu extraordinário valor, li a melhor introdução ao pensamento tomista, assim considerada por especialistas de renome internacional como Étienne Gilson, Jacques Maritain, Anton C. Pagis, Gillet, O. P. e, logo no ano seguinte, por outro erudito tomista dominicano, James A. Weisheipl, O. P. que, para além dos elogios que presta ao autor desta biografia de São Tomas de Aquino, refere que foi pela sua leitura que se fez dominicano e tomista. A facilidade com que G.K.C. escreveu esta biografia revela não uma profunda erudição ou um conhecimento pormenorizado da vida e da obra do monge italiano, como os autores que antes citei, mas sobretudo uma estreita ligação de pensamento, enraizada no sentido comum, na realidade humana, na verdade das coisas tal como são e não na loucura dos homens que as distorcem e transformam continuamente. O escritor inglês, que foi católico antes de ser recebido na Santa Madre Igreja, era também discípulo de S. Tomás, tomista de corpo e alma, sem nunca ter queimado as pestanas, em longas noites de insónia, a discutir as questões filosóficas e teológicas levantadas pelo Aquinense. E é por isso que continua a ser a melhor introdução ao pensamento de S. Tomás.
Outra obra cuja leitura me encheu a alma foi o estudo de Gustavo Corção:Três alqueires e uma vaca, da Livraria Agir Editora, do Rio de Janeiro, e já em sexta edição, em 1961, e cuja capa tinha um desenho do próprio G. K. Chesterton. A primeira publicação desta obra é de 1946 e demonstra a profunda ligação do extraordinário prosador brasileiro ao admirável escritor britânico. Aquando do centenário do nascimento do autor de Ortodoxia, escreveu Corção no jornal O Globo, de 6 de Junho de 1974, um artigo que começava assim: “ Graças à vigilância de António Olinto, na sua Porta de Livraria de O Globo, chego ainda a tempo de saudar o centenário de G. K. Chesterton, o incomparável escritor inglês que mais indelevelmente me marcou a alma nos dias em que andei perdido pelo mundo a procurar uma luz, luz de João e Maria, luz de Casa, luz de acolhimento entre as trevas de meu triste exílio. Devo a Chesterton as primeiras alegrias católicas.” Mais adiante, acrescenta: “Grande falta nos fazem hoje autores como Chesterton, que souberam desarmar, denunciar, desmascarar os ídolos, os ideais dos tempos modernos, que não passam das antigas virtudes cristãs tornadas loucas ou perversas.” E termina: “ Não me canso de agradecer a Deus o facto de ter encontrado Chesterton nos dias de desolação em que, sempre crendo em Deus-Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, das coisas visíveis e invisíveis, não conseguia, entretanto, encontrar a alameda e a porta de Sua Casa (…) O resto da apologia e deste estudo está no livro Três alqueires e uma vaca, que escrevi quando, graças a Chesterton, entre tantos autores e amigos, consegui passar no vestibular da Casa do Pai, isto é, consegui voltar à Fé e à Igreja do meu baptismo. Ave Maria!”
Do convívio com G. K. C. pela mão amiga e sabedora de Gustavo Corção – duplo e gratificante convívio -, passei para a leitura da Autobiografia, numa edição da Livraria Morais Editora (Lisboa, 1960, tradução e notas de Luís Sousa Costa). Foi o último livro que escreveu, embora tenham saído postumamente várias obras, sobretudo recolha de textos de carácter ensaístico. Para grande alegria dos seus muitos leitores e amigos. Como sucedeu também com esta Autobiografiachestertoniana em que a agilidade do Autor, verdadeiro caçador de lugares-comuns, ao jeito de Léon Bloy, nos atrai e nos cativa desde as primeiras páginas. Mas há também neste livro todo um percurso espiritual que o leva ao encontro da Igreja Católica Romana, terminando na Cidade Eterna, em pleno Vaticano.Deixemos que seja o próprio Chesterton a contar-nos: Esta história não pode, portanto, deixar de acabar como as histórias policiais, ou seja, com as respostas aos problemas e com a solução do problema original. Milhares de histórias totalmente diferentes, acabam da mesma maneira, com o problema resolvido. Mas, para mim, o meu fim é o meu começo, como diria Maurice Baring, citando as palavras de Maria Stuart; e esta convicção esmagadora numa chave capaz de abrir todas as portas me leva à memória do meu primeiro pressentimento do dom maravilhoso dos sentidos, feito ao homem, e da experiência sensacional da sensação. E eis que se ergue à minha frente, claríssimo e recortado como nos velhos tempos, o perfil de um homem atravessando uma ponte com uma grande chave debaixo do braço, tal como o vira no dia em que os meus olhos se abriram pela primeira vez para o mundo das fadas, pela janela que dava para o teatro de bonecos construído pelo meu pai. Mas eu sei agora que aquele a quem chamam o Pontífice, o artífice da ponte, se chama também o Porteiro, o homem das chaves; e que as chaves lhe foram dadas para fechar e para soltar, no tempo em que ele era um simples pescador, numa província distante nas margens de um pequeno mar, quase secreto.
E vieram depois as edições em língua castelhana, publicadas ora em Espanha, na Argentina ou no México. A primeira foi uma edição castelhana de A Inocência do Padre Brown, com tradução do escritor mexicano Alfonso Reyes, adquirida, numa tarde de verão, na velha Casa del Libro, em plena Avenida José António, em Madrid. Posso assim dizer que foi em Espanha que Chesterton me apresentou o seu querido amigo Padre John O’Connor, de Bradford, irlandês sensível, de espírito agudo, com aquela ironia profunda e aquele potencial de irritabilidade que é próprio das pessoas da sua raça e, ao mesmo tempo, airoso e delicado, pessoa divertida e que diverte. O Padre O’Connor que tanto apoiou Chesterton no campo espiritual – foi a ele que G. K. C. se abriu em confissão pela primeira vez – serviu-lhe de modelo e inspiração para o famoso detective Padre Brown que todos os amantes da boa literatura policial tão bem conhecem. E que, diga-se a propósito, influenciou grandes escritores do género. Há referências directas ao Padre Brown ou a Chesterton em Ellery Queen (O mistério dos fósforos queimados; A prova dos nove), S. S. Van Dine (O caso Benson), Agatha Christie (Crime no vicariato), só para citar, e meramente a título de exemplo, alguns dos mais conhecidos e apreciados pelos leitores contemporâneos. O sacerdote-detective e o seu criador exerceram também uma definitiva influência na obra de Dorothy L. Sayers, sem dúvida uma das mais populares escritoras de romances policiais do século vinte.
Do Padre Brown – cujas obras li anos mais tarde em tradução portuguesa – se pode dizer, usando as palavras do meu bom amigo Gustavo Corção, que a sua força “ está no bom-senso e no olhar poético e místico com que vê o mundo. Está até numa certa dose de distracção e sonolência com que se alivia do penoso trabalho de catar pontas de cigarros e impressões digitais. Diante dos dados concretos, candidamente apreendidos, interpretados muitas vezes ao pé da letra, ele se encontra em simpatia com o criminoso, e inventa poeticamente, ou recorda misticamente, como praticaria ele o crime.” E sempre impregnado da razão, mesmo quando parece distraído, a ponto de perder o guarda-chuva ou de não saber onde está. Foi por isso que logo na primeira aventura – A Cruz Azul -, espécie de cartão de visita de apresentação a todos nós, desmascara o falso sacerdote ao dizer-lhe que teve a certeza de que não era padre quando atacou a razão. Para logo acrescentar: É má teologia.
É ainda de este período a leitura de O homem que sabia demais, também em tradução castelhana, e que constitui um soberbo relato de mistério e de intriga sobre a corrupção política desenvolvida pelas altas esferas por meio de influências familiares e pessoais, nem sempre claramente visíveis e apercebidas de imediato, em que a personagem principal e verdadeiro detective, Horne Fisher, parece inspirado no velho amigo de Gilbert Keith Chesterton, o escritor e homem polifacetado Maurice Baring.
Numa edição de bolso, igualmente em castelhano mas agora publicada na Argentina, continuei a conversar amenamente com G. K. C. através de A Esfera e a Cruz, uma trepidante novela em que as duas principais personagens – um empedernido ateu e um fogoso católico – passam pelas mais inesperadas e mirabolantes aventuras para se baterem em duelo em defesa das suas ideias, sem nunca o conseguirem. Com naves espaciais à mistura, discussões quase kafkianas, entradas e saídas de manicómio e intermináveis perseguições policiais, temperadas sempre com o fino humor chestertoniano. O original inglês – The Ball and the Cross – foi publicado em 1911. Quinze anos depois influenciou O Processo, de Kafka e deixou marcas em Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, eem George Orwell. Também num livro italiano, do Cardeal Albino Luciani, Patriarca de Veneza, Ilustríssimos Senhores, que ao jeito de Giovanni Papini, reúne uma série de cartas dirigidas a personagens célebres, entre as quais uma ao “Caro Chesterton”, se faz uma excelente análise da actualidade de esta obra. Diga-se, a propósito, que o Cardeal Patriarca de Veneza foi, pouco depois, eleito Papa com o nome de João Paulo I. Há uma questão se fundo que percorre todo o livro: quando nos empenhamos em destruir a cruz, ou seja a religião cristã, estamos no fundo a destruir-nos a nós próprios, porque este sinal – com os dois braços abertos -, estende-se indefinivelmente e acolhe dentro de si todas as coisas, ao contrário da aparentemente perfeita e monótona esfera. Curiosamente, o livro começa com um debate entre o professor Lúcifer e o monge Miguel, cuja controvérsia se inicia exactamente no ponto em que a esfera e a cruz se intersectam, na cúpula de S. Paulo, em Londres.
Foi durante estes anos que se cimentou entre mim e G.K.C. uma sólida amizade. Os anos seguintes que, somados, já ultrapassam um quarto de século, serviram para reforçar este permanente e contínuo convívio, através da leitura de romances, ensaios, biografias ou poemas. Há por vezes a tentação, quando gostamos de um autor, de adquirirmos as obras completas, em bonita e sólida encadernação, daquelas que ficam como que a luzir na prateleira. Mas a ideia não me parece muito boa, pois a maior parte das vezes ficam a luzir e a dormir, já que raramente nos abalançamos a pegar nos grossos volumes e a levá-los connosco debaixo do braço. Agrada-me muito mais ter várias edições, de formas e formatos diferentes, que se podem transportar facilmente e ler em casa, no café, nos transportes públicos ou na praia. E edições noutras línguas, por vezes enriquecidas com excelentes prefácios e abundantes notas que demonstram quantos amigos tem o meu autor noutras terras e paragens. Foi assim que fiz com o meu amigo G. K. Chesterton. Entre algumas edições de bolso na língua original, há várias edições em castelhano, prova do profundo interesse por este autor no mundo hispânico, e também italianas, de que saliento um Francisco de Assis – “ La vita di un trasgressore, grande Santo della Cristianità, nel raconto di un maestro dell’humour”, como nos diz o editor, Guida Editori, Napoli, 1990 – que adquiri, há anos, num alfarrabista em Siena. Infelizmente, não há nenhuma edição portuguesa de St. Francis of Assisi (1932), mas há uma brasileira.
Já num artigo publicado no início da sua carreira literária (Speaker, 1 de Dezembro de 1900) tinha escrito Chesterton: A maioria das pessoas diz que a acção de S. Francisco encerra uma contradição fascinante. Expressou a ideia de que o riso é tão divino como o choro com uma linguagem muito mais fina e audaciosa do que qualquer outro pensador de este mundo. Chamava aos monges os saltimbancos de Deus. Os pássaros que passavam voando sobre ele, as gotas de água que caíam por entre os seus dedos nunca deixaram de lhe causar uma grande alegria. Seguramente foi o mais feliz dos filhos da humanidade. E, contudo, este homem fundou a sua regra inequivocamente sobre a negação do que nós consideramos necessidades imperiosas. Com os três votos que instituiu, pobreza, castidade e obediência, privava-se a si mesmo e aos que mais queria da propriedade, do amor e da liberdade. Por que é que o espírito mais poético e generoso da sua época encontrou nessas terríveis renúncias o ambiente que mais lhe agradava? Por que procurava fechar os olhos àquilo que os outros mais desejavam, ele que amava o que mais ninguém via? Por que foi um monge e não um trovador? Estas questões são demasiado amplas para poder ser contestadas aqui; deviam, no entanto, colocar-se em algumas das suas biografias.
Joseph Pearce, professor universitário inglês que nasceu em Londres em 1961 e se converteu ao catolicismo pela mão de Chesterton, autor de importantes estudos sobre G.K.C., entre os quais uma sólida biografia – Wisdom and Innocence. A Life of G. K. Chesterton (Hodder and Stoughton, London, 1996) – afirma, com toda a razão, que este texto bem poderia servir de introdução à biografia de S. Francisco de Assis que o escritor inglês escreveu no seu estilo inconfundível, extraordinariamente apelativo e profundamente cristão. Foi a primeira biografia redigida após a sua conversão ao catolicismo, e um dos seus maiores êxitos literários, que viu em S. Francisco um místico da luz do dia e da obscuridade, mas nunca da penumbra, um poeta que vivia a poesia e, sobretudo, um frade que descobriu a melhor forma de acção: a acção de graças.
A amizade implica sempre uma estreita relação entre a comunicação, que é o seu verdadeiro fundamento, e a expressão de essa amizade, que a consolida e solidifica, ou seja, o convívio. É através desse continuado e permanente convívio que melhor fortalecemos a amizade, ao mesmo tempo que nos apercebemos da riqueza interior do amigo escolhido, percorrendo em comum a sua vida, identificando-nos com princípios, valores e ideais que, como nós outros, persegue e defende, com persistência e segurança. E, por isso, é igualmente com agrado que vemos que, pela mesma razão, muitos o admiram e respeitam. Daí o meu natural interesse em textos, que antecedem algumas das suas obras, assinados por escritores que não escondem a sua relação, também ela afectiva e não apenas intelectual, com G. K. Chesterton. A lista seria imensa se fosse completa, e dificilmente estaria actualizada, dada a constante reedição de obras de G. K.C., quer em inglês, quer em traduções, nomeadamente em castelhano, pois a admiração pelo criador do Padre Brown é enorme no mundo hispânico, como já referi. Mas, mesmo assim, atrevo-me a citar a introdução de André Maurois à biografia de William Blake (edição castelhana); a selecção de ensaios chestertonianos e respectivo prólogo de Alberto Manguel, com o sugestivo títuloCorrer atrás do chapéu e outros ensaios (edição castelhana); o texto, fundamental, do seu inseparável amigo Hilaire Belloc – Bernard Shaw chamava à dupla de amigos, Chesterbelloc – que serve de introdução a uma antologia deEnsaios, em edição mexicana; a apresentação de O Poço e os Charcos (The Well and the Shallows, 1935) – uma das últimas obras publicadas ainda em vida de Chesterton – pelo presidente da Sociedade Chestertoniana Argentina, Horácio Velasco-Suárez, em recente edição argentina; e as palavras introdutórias do romancista espanhol contemporâneo Juan Manuel de Prada a O Homem Eterno(The Everlasting Man,1925), também numa recente edição espanhola. Esta obra, edição portuguesa da Aletheia 2009, marcou profundamente o conhecido escritor irlandês C. S. Lewis, criador das crónicas de Nárnia e das famosas Cartas do diabo ao seu sobrinho, e o romancista inglês Evelyn Waugh.
A influência de Chesterton na sua geração foi imensa, embora alguns dos seus melhores estudiosos considerem, e creio que com razão, o seu século seja verdadeiramente o século XXI que alguém já se atreveu mesmo a chamar “O Século de Chesterton”. De facto, encontram-se referências elogiosas em intelectuais tão diferentes como Ezra Pound, Jorge Luís Borges, Ronald Knox, Aldous Huxley, Graham Green, J. R. R. Tolkien, entre muitos outros. O interesse que a sua vida e vastíssima obra continua a suscitar é claramente visível se tivermos em conta as várias sociedades chestertonianas e revistas que lhe são dedicadas um pouco por todo o mundo: Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, Chile, Croácia, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Lituânia. O dinâmico presidente e fundador da American Chesterton Society, Dale Ahlquist – que também se converteu ao catolicismo através da leitura de Gilbert Keith Chesterton – é autor não só de livros sobre este escritor mas também de uma série de televisão G. K. Chesterton: The Apostle of Common Sense para a cadeia de televisão americana EWTN.
Em 1996, políticos, diplomatas e um arcebispo argentino pediram que se iniciasse o processo de canonização de Gilbert Keith Chesterton, inicialmente sugerido com a formação da sociedade britânica em 1974. Tudo, porque a sua marca é constante, a sua presença é permanente, a sua influência é indiscutível. Também a sua desconcertante inteligência, natural bondade e alegria de viver, solidamente alicerçadas numa fé inquebrantável, parece que conseguiram crescer ao virar do século vinte e são, cada vez mais, a melhor chave para abrir as portas do nosso século vinte e um. Talvez por isso, Nicolae Steinhardt (Bucareste, 1912- Rohia, 1989), escritor romeno, da geração de Mircea Eliade, Eugen Ionesco, Emil Cioran, Vintila Horia ou Alexandru Ciarãnescu, autor de um livro verdadeiramente extraordinário, de uma grande densidade humana e enorme riqueza cultural e espiritual – O Diário da Felicidade (1991) -, publicado postumamente, e que é hoje a obra mais lida na Roménia com mais de 200.000 exemplares vendidos, onde nos relata a sua vida, grande parte passada nas prisões comunistas em que, no meio de constantes privações, encontrou Cristo, fonte de perene e autêntica felicidade, deixa escapar um – mais que actual -: São Chesterton, rogai por nós!
ANTÓNIO LEITE DA COSTA
ADENDA – Este texto foi redigido em 2008. Felizmente, a apetência por Chesterton cresceu nestes últimos tempos e foram, por isso, reeditadas, em Portugal, algumas obras: Ortodoxia (Alêtheia Editores) e Disparates do Mundo(Diel), em 2008; O Homem Eterno (Alêtheia Editores), este pela primeira vez e em boa hora editado entre nós, e S. Tomás de Aquino (Civilização Editora), em 2009. Também o interesse pelo processo de canonização de G. K. Chesterton foi renovado e no passado dia 4 de Julho de 2009 realizou-se na Capelania católica da Universidade de Oxford um encontro de chestertonianos que comungavam essa mesma intenção. Abriu o colóquio uma comunicação do presidente da Chesterton Society Britânica, William Oddie – “Fé, Esperança e Caridade, as virtudes fundamentais de Chesterton” -, que serviu de mote para a referência à prática da virtude pelo escritor inglês e que a Igreja exige como requisito para abrir uma causa de beatificação. Sheridan Gilley falou sobre “ a santidade de G.K.C. como jornalista”; o Padre Ian Kerr discorreu sobre “ humor e santidade”; o professor dominicano Aidan Nichols – autor do importante estudo, The Thought of Benedict XVI. An Introduction of the Teology of Joseph Ratzinger, Londres, 2006 – aflorou a hipótese de Chesterton, “defensor da Fé”, como lhe chamou o Papa Pio XI, ter a verdadeira dimensão de um “doutor da Igreja”. Ideia também subscrita por William Oddie. O presidente da American Chesterton Society, Dale Ahlquist, lembrou a difusão da fé cristã pelas obras de G. K. C. – que o Papa actual, S. S. Bento XVI também lê e cita -, realçando a análise profética que faz do nosso tempo e que é verdadeiramente notável. Joseph Pearce, professor de literatura da Ave Maria University, da Florida, Estados Unidos, descreveu o seu “encontro” com G.K.C. e a sua conversão ao Catolicismo, enquanto William Oddie sublinhou, uma vez mais, o carácter de G. K. Chesterton que “odiava a heresia mas tinha uma extraordinária capacidade de amar o herético”.
Por tudo isso é este escritor tão actual e me atrevo, de novo, a repetir: São Chesterton, rogai por nós!
SCB entrevista Padre Ian Boyd, presidente do The G. K. Chesterton Institute for Faith & Culture
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A Sociedade Chesterton Brasil tem a grande satisfação de trazer ao público brasileiro uma entrevista inédita com uma das maiores autoridades no pensamento de Chesterton. Entrevistamos o Padre Ian Boyd, fundador e presidente do The G. K. Chesterton Institute for Faith & Culture. As perguntas desta entrevista contaram, também, com a colaboração daSociedade Chesterton Portugal. A tradução do inglês foi realizada por Wendy A. Carvalho.
Padre Ian Boyd é padre da Congregação de Santo Basil. Um estudioso de Chesterton reconhecido internacionalmente, ele é autor de The Novels of G. K. Chesterton (Londres, 1975). Por muitos anos ele foi professor de Inglês na Faculdade de Santo Thomas More, Universidade de Saskatchewan. Atualmente é membro do Departamento de Inglês na Universidade Seton Hall em South Orange, Nova Jersey. O padre Boyd também faz conferências sobre “Assuntos Sacros na Literatura Moderna.” Dentre os autores cristãos sobre os quais ele explica estão T. S. Eliot, Graham Greene, C. S. Lewis, Falnnery O’Connor, Piers Paul Read, Muriel Spark e Evelyn Waugh. Na literatura do séc. XIX, é interessado na obra de autores como Charles Dickens, Anthony Trollope e Nathaniel Hawthorne. O Pe. Boyd é fundador e editor de The Chesterton Review e presidenta do G. K. Chesterton Institute for Faith & Culture, situado na Universidade Seton Hall.
1. Padre Boyd o senhor é considerado uma referência internacional com relação ao pensamento e à obra de G. K. Chesterton. Como tu descobriste este grande escritor?
Meu interesse em Chesterton vem do meu pai, que era advogado no Oeste do Canada, que amava a escrita de Chesterton e que publicou no jornal de Chesterton, o G. K.’s Weekly – as cópias que estão no escritório onde estou escrevendo te responde suas questões.
2. Na sua opinião, qual é o melhor livro de Chesterton?
Me pergunto se há um “melhor” livro de Chesterton. Seu melhor escrito é disperso como ouro em pó ao longo dos cento e tantos livros que ele publicou e em seus incontáveis escritos soltos. Além disso, em certo sentido o todo de Chesterton está contido em cada parte do que ele produziu. Ele era um homem cuja visão de mundo era uma – uma discreta filosofia que deu a ele uma nova visão a respeito de tudo o que lhe chamou a atenção.
3. O que faz de Chesterton um escritor único? Qual a sua contribuição mais importante?
A singularidade de Chesterton vem de sua sabedoria. Como A. J. Maycock assinala, tal sabedoria é um dom especial, permitindo àquele que a possui falar como se tivesse a verdade, não como quem raciocina laboriosamente em direção a ela. Chesterton é mais que um escritor religioso, e seus leitores vão a ele por reconhecerem a sabedoria do que ele tem a dizer.
4. Na sua opinião, por que as universidade ligadas à Igreja Católica não mencionam Chesterton em seus programas de filosofia e de literatura?
A secularização da educação superior em todo o mundo ocidental explica a ausência de Chesterton nos programas universitários de filosofia e literatura. Contudo, isto pode ser mudado. Um artigo sobre Chesterton no London Times Literary Supplement descreveu-o simplesmente como “um dos nossos grandes escritores.”
5. Como foi concebido o The G. K. Chesterton Institute for Faith & Culture?
O Chesterton Institute e seu jornal The Chesterton Review foram fundados em 1974. Houve uma conferência naquele ano em Spode House, uma Dominican Retreat House in England, para celebrar o centenário do nascimento de Chesterton. Naquele ocasião, eu tirava um ano de licença (Ano Sabático) em Oxford, preparando um livro sobre os romances de Chesterton. Eu assisti a conferência da Spode House, e enquanto estive lá, sugeri para algumas pessoas que lá estavam de que havia necessidade de um jornal chestertoniano. Quando retornei à faculdade St. Thomas More, no oeste do Canadá, onde eu lecionava, entrei em contato com um número de outros chestertonianos e, com a ajuda de minha colega, a irmã Mary Loyola, e da faculdade, e dos padres da minha comunidade religiosa The Congregation of St. Basil, a primeira edição da Review foi lançada no outono deste ano.
6. O senhor visitou o Brasil para participar de um evento organizado pelo CIEEP em 2009. Qual foi a sua impressão deste evento e do nosso país? Desde aquele evento, o senhor pensa que Chesterton se tornou mais famoso no Brasil?
A conferência no Brasil foi apenas uma de uma série de conferências sobre Chesterton em todo o mundo as quais todo ano atendemos eu, professor Dermot Quinn e Gloria Grabois. Os palestrantes nestas conferências incluem especialistas em Chesterton dos países em que as conferências são feitas. Como resultado de nossa conferência no Brasil é que agora publicamos uma edição de The Chesterton Review em português, todo ano.
7. A terceira edição de The Chesterton Review em português foi publicada este ano. Quais são os novos planos para The Chesterton Review? Qual a sua impressão a respeito do modo como os brasileiros vêem o periódico? Em 2014, The Chesterton Review celebra seu quadragésimo aniversário. Qual será a causa deste sucesso?
Penso o Brasil como o maior país católico no mundo. Seria perfeitamente compreensível se o Brasil se tornasse um país interessado num dos mais importantes escritores católicos do século XX e em um jornal devotado a estudar a obra do mesmo, se nosso jornal teve algum sucesso é por causa que se trata de Chesterton em si, pois a influência de um jornal depende da qualidade do que nele se encontra. E estou um tanto orgulhoso da qualidade dos escritos de The Chesterton Review nos últimos quarenta anos. O escritor inglês do século XIX, Coleridge, disse uma vez que um bom texto forma o próprio gosto pelo qual é apreciado. Eu gostaria de pensar que isto pode ser verdade a respeito da nossa revista.
8. Sabemos que o bispo inglês Peter John Haworth autorizou (indicando um padre para tal tarefa) o início da investigação diocesana para abrir o processo de beatificação de Chesterton. Como o senhor encara estas notícias? O senhor acredita que Chesterton pode ser reconhecido como um santo, no futuro?
Estou realmente encantado pelo fato de a santidade de Chesterton estar sendo reconhecida de modo oficial. No entanto, tenho algumas restrições quanto ao esforço de reconhece-lo um santo. Ele sempre foi amado por Cristãos Protestantes, e certamente por pessoas que não possuem uma crença religiosa. Temo que dando a ele o título de “Santo Gilberto” podemos limitar este encanto.
Muitos jovens descobriram o pensamento e a obra de Chesterton recentemente. Que conselhos tu darias àqueles que querem se aprofundar no estudo deles?
Jovens amam Chesterton pela sua alegria. Como disse Franz Kafka, “ele é tão feliz que posso facilmente acreditar que encontrou Deus.” É difícil saber que livro indicar para leitores jovens. Talvez os contos do Padre Brown seriam uma boa indicação. Tais contos foram traduzidos para muitas línguas e nunca estiveram fora de publicação desde que foram publicados pela primeira vez em 1911. Permanecem sendo a mais conhecida obra de Chesterton. Ideias populares, Chesterton insiste, estão sempre certas. Então o Pe. Brown, o amável símbolo de Chesterton para a Igreja, é a melhor introdução à sua obra. Estes contos encantam os leitores comuns cujo julgamento Chesterton achava ser raramente errado.
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