Diferença Sexual e Unidade Dual
Por Danillo Holzmann:
Unidade de corpo e alma
O homem é um ser que essencialmente se difere dos outros seres criados por pertencer ao mesmo tempo ao mundo visível e invisível. Ele é um ser corpóreo-espiritual que abriga no seu íntimo duas realidades que têm uma estreita relação entre si. Essas duas dimensões encontram seu ponto de convergência no conceito de pessoa. A pessoa é o ponto de síntese das diferentes dimensões do ser humano, e quando nos referimos às dimensões do ser humano não é o mesmo que dizer partes do ser humano. “As dimensões são epifanias típicas que manifestam a densidade do todo unitário. Onde há realidade espessa há espaço para dimensões”[1]. Em outras palavras, quando falamos de uma realidade corpóreo-espiritual no ser humano não estamos falando de soma de partes, mas, da unidade como fator primeiro, como ponto de partida. O homem é uma unidade de corpo e alma. Não se quer dizer que se trata de duas naturezas unidas. Mas há apenas uma única natureza formada pela união dessas duas dimensões do ser humano: corpóreo-espiritual.
Este mesmo ser humano não é um brinquedo nas mãos do seu Criador, ele é interpelado e chamado a respondê-lo de maneira pessoal e intransferível. Essa característica é também marcada pela sua sexualidade como possibilidade de relação: o ser humano existe como homem e mulher e desta forma expressa “o humano”. O homem e a mulher, sempre terão diante de si, outro modo de existir que lhe é, de certo modo, inacessível: terão sempre outro modo de ser que sozinho, não expressa a totalidade do humano. A diferença sexual é neste sentido o sinal da complementaridade entre homem e mulher na expressão do humano.[2]
Diante da situação atual de esvaziamento do significado da diferença sexual entre homem e mulher, nos colocamos diante de um verdadeiro desafio. Existe uma tendência da sexualidade ser apresentada como uma escolha arbitraria do indivíduo, negando completamente o dado natural e a identidade pessoal própria, privando a introdução das pessoas na verdade do próprio ser. Essa mentalidade vem crescendo no mundo desde a chamada “revolução sexual”,[3] que prometia a liberação do sexo de uma tríplice escravidão através de uma tríplice negação: a primeira é a negação da interdependência e união essencial entre união de sexos e procriação, com o conseqüente perigo de reduzir a relação sexual a um meio de prazer; a segunda negação é a do princípio do valor exclusivo da heterossexualidade e, portanto, afirmação do auto-erotismo e da homossexualidade como comportamentos antropologicamente e eticamente equivalentes às relações conjugais; e por fim a negação da diversidade e complementaridade entre homem e mulher em nome de uma absoluta e mecânica paridade de sexos.
Com a presença tal problemática, surgem algumas questões: É possível falar de um sentido originário do dado natural da diferença sexual? Como compreender a decisão do Criador de que o ser humano exista sempre como homem e mulher? O que significa essa unidade dual a qual o homem e mulher são chamados?
De fato, nos parece claro que nessa tentativa de homogeneização em que nossa sociedade está inserida, se presta menos atenção à complementaridade de que está dotada por natureza a relação homem-mulher.[4] Como conseqüência constatamos uma verdadeira crise no significado do ser homem e do ser mulher, em algumas circunstâncias reduzidos à meros “papeis sociais”[5] e muitas vezes, a uma verdadeira e completa negação do dado natural, - o que é tão prejudicial como apoiar-se apenas nele - aviltando o significado da corporeidade, transformando-a em mero instrumento de manipulação.[6]
Como o paradigma bíblico dos dois relatos da Criação ajuda a entender o mistério do corpo
Antes de tudo é necessário compreendermos que a Revelação não se sobrepõe como algo externo à experiência humana, mas a ilumina interiormente, e ao mesmo tempo, a experiência humana coloca perguntas mais profundas para compreender a Revelação. Neste sentido, as duas narrativas da criação no livro do Gênesis (cf. Gn 1, 27 e Gn 2, 18-25)[7] nos darão uma chave interpretativa para o mistério do corpo. Segundo o papa João Paulo II, elas constituem “a base de toda a antropologia cristã”.[8] Sem elas, a reflexão cristã estaria privada dos elementos essenciais da sua visão de homem.
O biblista Italiano Bruno Ognibeni diz que “é necessário considerar que as origens de um fenômeno são vistos como expressivos de sua natureza. O que aconteceu no início é, portanto, normativo, representa o que uma dada realidade é constitutivamente”.[9] Por essa razão, convém-nos examinar alguns aspectos presentes nesses relatos que nos indicam como compreender o mistério do corpo. Ângelo Scola diz que “a sexualidade é uma dimensão originária e não derivada, no homem. Não se pode construir uma antropologia que prescinda da natureza sexuada do homem”.[10] Esse dado nos permite entender que nos modos de existir do ser humano (homem e mulher), no seu fundamento, está a sexualidade. É fundamental afirmar o caráter plenamente humano, isto é, pessoal, da sexualidade. O corpo expressa a pessoa,[11] e a expressa também no seu ser homem ou mulher. Ele é “sacramento da pessoa”, ou seja, manifestação visível de uma realidade invisível[12]. O corpo é uma “epifania” de sua interioridade. Ele realiza através da sua dimensão exterior uma realidade invisível e interior da pessoa. Ele manifesta a pessoa em sua visibilidade. O corpo não é um instrumento da pessoa, que pode ser manipulado, mas parte integrante e essencial dela, de modo que “todo atentado contra a dignidade do corpo é um atentado contra pessoa”.[13] “A pessoa real e concreta é encarnada. Imanência e transcendência se dão na corporeidade”[14] e numa corporeidade marcada pela sexualidade. Toda pessoa humana é corpo e é sexuada. Pois “a sexualidade não é (apenas) uma infra-estrutura biológica, mas uma dimensão que atravessa de ponta a ponta a existência humana.”[15]
O significado da unidade dual
Ainda na perspectiva dos chamados dois relatos da Criação, outro elemento também nos interessa para a nossa reflexão. O critério de unidade, o grande modelo para a relação homem-mulher não é uma “fundição”, que nega a subjetividade, como o senso comum costumam chamar de “metade da laranja”[16]. Afirmar esse pensamento negaria uma questão paradigmática dentro da narrativa do Gênesis: a solidão originária. Tal paradigma é basilar em nossa reflexão, pois, é nele que se descobre a subjetividade do homem. Sempre se deu atenção ao aspecto negativo dasolidão originária como o de não achar correspondente. Porém um aspecto positivo é o fato de através dela, da solidão, o ser humano não só descobre que ele, embora comungue da realidade corpórea, não é igual aos outros animais e que não existe nada na terra criada que o corresponda em igual dignidade, que possa estabelecer com ele um diálogo entre iguais. Mas, além disso, através da solidão originária, ele se reconhece como um ser único na criação, que existe um espaço em seu coração que o Criador não quis preencher: esse é o espaço para a comunhão interpessoal com um outro idêntico, um “auter ego”, ou seja uma outra subjetividade completamente autônoma e não uma extensão de si mesmo. Neste sentido a “solidão, com efeito, significa (...) a subjetividade do homem, a qual se constitui através da autoconsciência.”[17]
A “autoconsciência”, nessa perspectiva, corresponde primeiramente à consciência de diversidade diante da Criação, da solidão que o homem experimenta diante das outras criaturas. Ele experimenta, além da dependência do próprio Deus – pois ele não se dá a si mesmo sua existência - a falta de correspondência dos outros seres em relação e si mesmo e, ainda incorporado a essa experiência, o desejo de comunhão com um outro ser de igual natureza. Esses elementos constituem, de certa maneira, uma definição “a-histórica” da subjetividade humana, que prescinde das diversas experiências humanas. A solidão originária é o indicador de que o ser humano foi feito para realizar-se através de uma comunhão interpessoal.
Essa relação interpessoal tem o seu modelo na “pericorese”. Na relação de amor e dom entre as pessoas divinas no seio da Trindade. “Na unidade dual aflora uma analogia da comunhão trinitária”. [18] O comunnio personarum (comunhão de pessoas) passa a ser a possibilidade de realização plena da diferença sexual, ou melhor, a sua razão de existir está impressa neste fato: uma verdadeira unidade supõe a diferença. São diferentes para que possam se doar um ao outro, idêntico, mas diferente. A relação interpessoal dá à diferença sexual o status de traço constitutivo da Imago Dei, pois, conjuga os binômios identidade-diferença sem prejuízos, realizando plenamente a intimidade e a relação. O outro modo de ser humano constitui um auter ego , uma outra subjetividade a quem é possível doar-se, e através dessa doação realizar-se como ser humano. “O ser humano (homem e mulher) existe somente em relação, nasce de uma relação, cresce e desenvolve sua identidade na medida em que é inserido numa trama de relações”.[19] Nisto consiste o sucesso do desafio de ser pessoa, pois, “o homem não é somente imagem de Deus enquanto ser livre e racional, mas o é enquanto ser que se realiza na comunhão interpessoal, como relação”.[20] Através também de sua corporeiradade.
Conclusão
A temática da diferença sexual e de uma possibilidade de interpretação de tal fenômeno foi objeto de nossa reflexão, sobretudo, tendo como princípio que a pessoa é mais do que o seu corpo. Porém, este é o sinal visível da pessoa, é o “sacramento” dela. Sendo o ser humano uma unidade de corpo e alma, então, um sinal no corpo, pode ser entendido como uma característica dela não só impressa e expressa na sua corporeidade, mas também no seu psiquismo e no elemento espiritual que o transcende e que também é profundamente marcada pela sexualidade.
Não percamos de vista porém que “o homem é a realidade mais profunda e mais complexa que conhecemos no âmbito do universo natural”,[21] e a grandiosidade da temática escapa dos olhares mais atentos. Muito longe de dar explicações que possam esgotar a temática, nossa proposta é encontrar caminhos de reflexão sobre essa realidade sem perder de vista que a compreensão mais profunda sobre o humano não pode jamais dizer tudo sobre ele. Isso nos obriga a usar o recurso do mistério como categoria principal, onde não podemos compreender tal realidade sem estar envolvido nela, onde sempre encontra-se como que um “ponto de fuga” que nos diz: é mais, muito mais que isso.
A felicidade do ser humano exige que se conheça melhor o que é próprio do ser humano e que cada pessoa humana se reconheça na sua característica particular, sem uma permanente disputa ou comparação com o diferente. A tão almejada libertação, tanto do homem quanto da mulher, não estará jamais numa perda de suas características para assemelhar-se ao outro. Eles não devem concorrer um contra o outro, mas relacionar-se com a diferença na perspectiva da complementaridade, e nessa complementação harmônica encontrar sua felicidade.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, Paulinas, São Paulo, 1989
FLÓRES, Gonzalo, Matrimônio e Família, Trad: Antônio Efro Feltrin, São Paulo, Paulinas, 2008.
JOÃO PAULO II, Homem e mulher os criou: Catequeses sobre o amor humano, EDUSC, Bauru-SP, 2005.
PHILIPPE, Marie – Dominique, No coração do amor: conversa sobre o amor, o casamento e a família, São Paulo, Paulinas, 1997.
QUINTÁZ, Alfonso López, O Amor Humano: Seu sentido e alcance, Vozes, Petrópolis, 1995.
RÚBIO, Alfonso García, Unidade na Pluralidade:o ser humano à luz da fé e da reflexão cristã, 4ª edição revisada e ampliada, São Paulo, Paulus, 2001.
SCOLA, Ângelo, Mistério Nupcial, EDUSC, Bauru-SP, 2003.
SCOTTO, Raimondo, O Amor tem mil faces: sexualidade e vida conjugal, Cidade Nova, São Paulo, 2005.
Artigos do Léxicon:
AGNELLO, Cardeal Geraldo Majella, O corpo e os desafios atuais: ética e teologia in Lexicon: Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, 2007, p. 161-169
PETRINI, João Carlos, Relações Ocasionais e Relação Nupcial, in Lexicon: Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, 2007, p. 705
REVOREDO, Oscar Alzamora, Ideologia de Gender: Perigos e alcances in Lexicon: Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, 2007, p. 491-507.
[1] ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, Paulinas, São Paulo, 1989.
[2]JOÃO PAULO II, Homem e mulher os criou: Catequeses sobre o amor humano, EDUSC, Bauru-SP, 2005, pág. 94: “...‘comunicam’ na plenitude da humanidade, que se manifesta neles como recíproca complementaridade, precisamente, porque ‘masculino’ e ‘feminino’. (cf. também audiência: A CRIAÇÃO COMO DOM FUNDAMENTAL E ORIGINAL, 1)
[3] Para a descrição de alguns dos diversos fenômenos culturais que geraram tal mentalidade in AGNELLO, Cardeal Geraldo Majella, O corpo e os desafios atuais: ética e teologia in Lexicon: Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, 2007, p. 161-169/ F. GIARDINI La revoluzione sessuale, Pauline, Roma,1974.
[4] FLÓRES, Gonzalo, Matrimônio e Família, Trad: Antônio Efro Feltrin, São Paulo, Paulinas, 2008. p. 29 (nota 25)
[5] Não se tenta negar que o masculino e o feminino têm implicações culturais e que também é construído pela cultura, no ponto de vista apresentado o limite está na tentativa de apresentar essas realidades exclusivamente como culturais.
[6] Tal mentalidade vem crescendo com a chamada “Ideologia de Gênero”. Para uma maior aprofundamento in REVOREDO, Oscar Alzamora, Ideologia de Gender: Perigos e alcances inLexicon: Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, 2007, p. 491-507.
[7] Dentro da teologia bíblica, ainda não é um ponto comum a visão do corpo, inclusive a sexualidade, também como traço fundamental da imago Dei. A afirmação de que no primeiro relato da criação (cf. Gn 1, 27), é a possibilidade de comunhão interpessoal através da comunicação que é o verdadeiro traço da Imago Dei é mais comum entre os biblistas. O biblista italiano Bruno Ognibeni, em fonte ainda não publicada, orienta a necessidade de um cuidado : “grande cautela se deve ter quando se afirma que o homem é imagem de Deus enquanto macho e fêmea. É certamente legítimo reconhecer uma certa correspondência entre o homem “uno por naturaleza e bino en personas”e Deus uno e trino, para que se evite de atribuir conceitos deste gênero aos autores bíblicos. O testemunho bíblico e o aprofundamento teológico devem existir sob planos rigorosamente distintos.” Porém, tal doutrina (a corporeidade como traço constitutivo da Imago Dei) se justifica teologicamente na exegese bíblica atual e em alguns escritos do papa Jooa Paulo II sobre a temática.
[8] Mulieris Dignitatem, 6
[9] Apostila ultilizada pelo professor Bruno Ognibeni durante um curso oferecido à turma de mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da UCSal em maio de 2006. p. 9.
[10] SCOLA, Ângelo, Mistério Nupcial, EDUSC, Bauru-SP, 2003. p. 38.
[11] JOÃO PAULO II, Homem e mulher os criou: Catequeses sobre o amor humano, EDUSC, Bauru-SP, 2005, pág. 92: “De fato,(o corpo) exprime a pessoa na sua consistência ontológica e existencial, que é algo mais que o ‘indivíduo’, e, por conseguinte, exprime o ‘eu’ humano pessoal, que funda, a partir de dentro, a sua percepção ‘exterior’.”(PLENITUDE PERSONALÍSTICA DA INOCÊNCIA ORIGINAL, 4)
[12] SÃO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, I, q. 75, a. 4.
[13] SCOLA, Ângelo, Mistério Nupcial, EDUSC, Bauru-SP, 2003. p. 39.
[14] RÚBIO, Alfonso García, Unidade na Pluralidade:o ser humano à luza da fé e da reflexão cristã, 4ª edição revisada e ampliada, São Paulo, Paulus, 2001. p. 319.
[15] GALIMBERTI, U. abud: SCOTTO, Raimondo, O Amor tem mil faces: sexualidade e vida conjugal, Cidade Nova, São Paulo, 2005. p. 18.
[16] No grande clássico da filosofia O Banquete de Platão ou “o simpósio” ou “do amor”(189d – 191d) o elogio ao amor feito por um dos convivas diz que nas origens existia uma criatura andrógina, que não era nem totalmente masculino nem totalmente feminino e que como punição por um ato de insolência, Zeus os divide em duas partes para torná-los mais fracos, e os corpos, lamentando à parte que lhe foi perdida vai em busca dela:“O amor tende a reencontrar a antiga natureza, esforça-se para fundir numa só e por sarar a natureza humana”. Tal mentalidade influenciou e ainda influencia nossos tempos.
[17] JOÃO PAULO II, Homem e mulher os criou: Catequeses sobre o amor humano, EDUSC, Bauru-SP, 2005, pág. 68.( SIGNIFICADO DA ORIGINÁRIA SOLIDÃO DO HOMEM, 6)
[18] SCOLA, Ângelo, Mistério Nupcial, EDUSC, Bauru-SP, 2003. p. 41
[19] PETRINI, João Carlos, Léxicon: Relações Ocasionais e Relação Nupcial.
[20] MD, 7
[21] ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, Paulinas, São Paulo, 1989
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