As experiências originais do ser humano
O grande legado do Papa João Paulo II foi a sua “Teologia do Corpo”, dividida ao todo em seis grandes ciclos de Catequeses. O primeiro vai até a 23ª e recebeu o título de “No princípio”.
Conforme visto na aula anterior, a frase basilar do primeiro ciclo foi: “Disse Jesus: “No princípio não era assim” (Mt 19,3 e Mc 10,2). Ora, se a realidade atual do sexo entre homem e mulher não é do jeito que Deus pensou no início, como era então? Para responder essa indagação, Papa João Paulo II parte da análise do relacionamento entre homem e mulher antes do pecado original.
Iniciando as reflexões, apresenta no primeiro ciclo três pontos fundamentais: a solidão originária, a comunhão originária e a nudez originária, que são chamadas por ele de “experiências originais do ser humano”, ou seja, estavam no início e hoje não estão ou se apresentam de maneira deformada. Christopher West diz:
João Paulo lança um olhar animador sobre as estórias da criação. (...) Embora não tenhamos uma experiência direta do estado de total inocência do primeiro homem e da primeira mulher, o Papa afirma que em cada um de nós existe um “eco” do começo. As experiências originais - diz ele - “estão sempre na raiz de toda experiência humana (...). Encontram-se tão efetivamente entrelaçadas com as coisas ordinárias da vida, que geralmente nos passa despercebido o seu caráter extraordinário”. [01]
O homem é sozinho. Mas, não se trata tão somente de um estar sem mulher. Do versículo “Não é bom que o homem esteja só.” (Gên 2,18), o Papa “extrai um sentido mais profundo”[02], pois, segundo ele, “Adão nos representa a todos, (...) pois é a única criatura corpórea feita à imagem e semelhança de Deus. Como homem, está sozinho no mundo visível como uma pessoa”[03]. E continua dizendo que Adão “procurou uma auxiliar entre os animais e não a encontrou”, porque era diferente. A diferença entre Adão e os animais aos quais nomeara é que ele possuía a liberdade, uma vez que “não é determinado por sua instintividade”. Os animais não possuem alma, por isso não têm também liberdade e, sem ela, são incapazes de amar. São escravos de seus instintos.
O homem, por sua vez, reconhece na mulher - ossos dos seus ossos, carne de sua carne - que não está mais só, pois completam-se mutuamente. Embora continuem ainda “sozinhos” no mundo, no sentido de que suas almas anseiam por Deus, reconhecem-se um no outro. West explica que Adão foi dotado de uma capacidade para amar, advinda da liberdade com que Deus o dotou:
Em sua solidão, o primeiro homem percebe que sua origem, sua vocação e seu destino é o amor. Percebe que, diferentemente dos animais, é convidado a entrar em “aliança de amor” com o próprio Deus. É esta união de amor com Deus que, mais do que qualquer outra coisa, define sua “solidão”. Ao experimentar esse amor, com todo o seu ser anseia por partilhá-lo com outra pessoa igual a ele. (...) É na solidão, portanto, que Adão descobre sua dupla vocação: amar a Deus e amar ao próximo.[04]
Esta solidão que “é algo espiritual, no entanto, é experimentada corporalmente. (...) E podemos também dizer, [que] o corpo expressa a liberdade da pessoa, ou, pelo menos, para isso é destinado.”[05] Assim, o homem é livre para dizer sim ou não ao convite feito.
Portanto, como o homem é “pessoa”, dotado de liberdade, capaz de amar, Deus o chama para o amor, para amar, para relacionar-se. Ele é convidado a sair de si na direção do outro, pois é isso precisamente o que o faz “pessoa”. Diz West que “a liberdade é concedida para amar. Ela pode levar à destruição e à divisão, mas sua finalidade é dar vida e criar unidade.”[06]
Assim, a solidão originária que está no homem é uma marca que está em seu ser.
Não passará porque não existe mulher que possa saciar o seu coração, da mesma forma que não existe homem que possa saciar o coração dela. Isso ocorre porque a solidão originária do homem aponta para Deus.
Essa afirmação que pode ser observada por qualquer um que olhe para dentro de si mesmo, encontra eco nas palavras de Santo Agostinho: “Criaste-nos para vós e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em vós.” É por isso que a experiência da solidão originária deve ser um trampolim para a comunhão e para o amor.
O homem é relação de comunhão e de amor, isso o define. Por isso Adão exclamou jubiloso quando viu a mulher: “Desta vez sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne!”, porque Deus fez a mulher da mesma natureza que a sua. Sendo assim, ambos são chamados a estarem em comunhão. Christopher West explica que:
A criação da mulher a partir de um osso de Adão é uma forma figurada de expressar que ambos, homem e mulher, participam da mesma humanidade. Ambos são pessoas feitas à imagem de Deus. Ambos estão “sozinhos” no mundo, pois são diferentes dos animais (solidão original); mas ambos são chamados a viver numa aliança de amor. [07]
“Osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2,23) pode ser considerada a primeira poesia de amor. É um canto de amor. Mas, de que modo a mulher completa o homem? Como se dá a comunhão entre ambos? A resposta pode até parecer estranha, mas é certo que entre os seres humanos só há comunhão e encontro pessoal de fato quando duas solidões se encontram sem pretender uma saciar a solidão do outro.
Comunhão é diferente da simples união, pois quando algo é “uno”, ele não está necessariamente em comunhão com outra coisa, pois não existe relacionalidade com nada. É é a partir dos dois necessários para que haja comunhão - sem que um queira “fagocitar” o outro - que pode existir a “comunhão”. No entanto, nas relações interpessoais há uma tendência doentia de dominação, em que um se torna objeto, coisa. West explica que :
O tornar-se “uma só carne”, (...), não consiste apenas na união de dois corpos (como no caso de animais); é “uma expressão ‘sacramental’ que corresponde à comunhão de pessoas”. Lembre-se aqui o que dissemos sobre a “sacramentalidade” do corpo. Ele torna visível o mistério invisível de Deus, que é em si mesmo uma eterna comunhão de Pessoas; de Deus que em si mesmo é amor. [08]
Portanto, o Papa JPII fala sobre a unidade originária, ou seja, de como a comunhão e a solidão se completam mutuamente. Homem e mulher se tornam uma só carne quando se unem e tal união não implica em que os dois corpos desapareçam. Pela observação direta do corpo de um homem já se pode notar o quanto é incompleto e o modo pelo qual é justamente o corpo da mulher que o completa.
O terceiro ponto é a nudez originária. O Papa João Paulo II, de maneira corajosa, ensina que essa “é precisamente a chave para compreender o plano original de Deus para a vida humana”.[09]
Deus procura pelo homem no Jardim, chama-o e, então, o homem responde: “Ouvi teu ruído no jardim. Fiquei com medo, porque estava nu, e escondi-me.” (Gên 3,10) Ora, uma das consequências do pecado original é justamente a percepção aguda da própria nudez como algo negativo. Intuitivamente, o Papa João Paulo II diz, então, que a nudez originária não era negativa, portanto, Deus criou o homem para viver nu.
Pode parecer espantoso, mas, diante disso, a conclusão é de que as roupa são usadas por causa do pecado original. Por outro lado, já não é mais possível ao homem viver nu, como se estivesse no paraíso. Não se trata de uma apologia ao naturalismo. Mas, é inegável que no projeto original de Deus havia uma nudez e ela era inocente. Por quê? Diz o Papa que, naquela realidade originária, a mulher não sentia necessidade de esconder o próprio corpo, pois não havia perigo do homem tratá-la como objeto.
Tome essa experiência de medo (vergonha) diante de outra pessoa e, dando-lhe meia- volta, chegamos à experiência da nudez de Adão e Eva sem sentirem a menor vergonha. A luxúria (desejo sexual para satisfação própria) ainda não tinha penetrado no coração humano. Daqui porque nossos primeiros pais não sentiram necessidade de autodefesa na presença do outro, simplesmente por que o outro não representava nenhuma ameaça à sua dignidade. Como se expressa poeticamente o Papa, eles “se olham e se conhecem” com toda paz do olhar interior. Esse “olhar interior” indica não apenas a presença de um corpo, e sim de um corpo que revela um mistério pessoal e espiritual. Eles viram o plano de amor de Deus (teologia) como que gravado em seus corpos nus, e isto era exatamente o que desejavam: amar como Deus ama, em e através de seus corpos. E não existe medo (vergonha) no amor. “O perfeito amor lança fora o temor.” [10]
No projeto inicial de Deus também não havia a idolatria. Ora, o corpo humano é uma imagem e, como tal, pode ser ícone ou ídolo. Ícone é uma janela que se abre para Deus. Para Adão, o corpo de Eva era como que um ícone que o levava para o Infinito que é Deus. Todavia, com o pecado original, a imagem que antes era ícone torna-se ídolo.
O ídolo é a imagem que toma o lugar de Deus. É uma realidade opaca, fechada, na qual o homem deixa de olhar para Deus e se concentra somente na mulher. Na realidade originária, o homem podia enxergar a mulher e ver que ela o levava para Deus. Hoje, por causa do pecado original, essa visão se tornou muito difícil, mas grandes santos chegaram nesse estágio.
Uma famosa história contida nos ditos Padres do Deserto conta que um grupo de monges certa vez se deparou com uma prostituta no caminho. Viraram seus rostos para não verem a nudez da mulher. Menos o monge mais santo. Este chorou e exclamou, olhando fixamente para a mulher: “Vejam como Deus é grande. Vejam com que amor ele fez suas criaturas.” Este é o Adão, este é o homem originário, esta é a nudez originária.
O corpo humano possui um significado esponsal, de união, em que já é aqui na Terra um sacramento da união que o homem precisa ter com Deus e que terá, de fato, na eternidade. Segundo o Papa:
A nudez sem envergonhar-se mostra que o primeiro casal participou da mesma visão de Deus. Eles conheceram a sua bondade. Conheceram o glorioso plano de amor traçado por Deus. Viram-no escrito em seus corpos e o experimentaram na atração mútua. Com o surgimento do pecado, porém, perdemos essa gloriosa visão. Mas não esqueça que “Jesus veio restaurar a criação na sua pureza original”. Claro, isso só se completará no céu; no entanto, através da graça da redenção, podemos começar a conquistar ainda nesta vida o que se perdeu. [11]
O Gênesis fala do Apocalipse. O casamento de Adão e Eva fala do casamento de Deus com a humanidade. O primeiro casamento aponta para o segundo e esta é a realidade da Teologia do Corpo.
Referências
- WEST, Christopher, “Teologia do Corpo para principiantes - Uma introdução básica à revolução sexual por João Paulo II”, Editora Myrian, 2008, pág. 36
Nenhum comentário:
Postar um comentário