Evangelização, encontra-se uma que se refere ao apelo que o Conselho deve fazer às
Congregações Religiosas:
dar a conhecer e incentivar iniciativas ligadas à nova evangelização já em curso nas várias
Igrejas particulares e promover a realização de outras novas, comprometendo também,
concretamente, os recuINTRODUÇÃO
Desde o início de seu Pontificado, o Papa Bento XVI, tem manifestado forte preocupação
com a profunda crise de fé que atinge muitas pessoas comparando-a a um processo de
desertificação espiritual. “Conduzir os homens para fora do deserto, para lugares da vida, da
amizade com o Filho de Deus” (PF, 2), tem sido um constante apelo dirigido à Igreja toda,
através de suas pregações, documentos e iniciativas.
Em junho de 2010, o Papa Bento XVI criou um Conselho Papal para a promoção da nova
evangelização através da Carta Apostólica Ubicumque et semper e convocou um Sínodo
Extraordinário dos Bispos para outubro de 2012 com o tema “A Nova Evangelização para a
transmissão da Fé”. Coincidindo com o cinquentenário de abertura do Concílio Vaticano II e
vinte e cinco anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica, na abertura do mesmo
Sínodo, proclamou o Ano da Fé, no qual, segundo a Carta Porta Fidei, quis “introduzir o
complexo eclesial inteiro num tempo de particular reflexão e redescoberta da fé” (PF, 4).
Dentre as tarefas que delegou ao Pontifício Conselho para a Promoção da Nova
rsos presentes nos Institutos de Vida Consagrada e nas Sociedades de
Vida Apostólica (Ubicumque Et Semper, Art. 3,3).
A pedido do Papa Bento XVI, a Congregação para a Doutrina da Fé, em acordo com os
Dicastérios competentes da Santa Sé e com a contribuição do Conselho para a preparação do
Ano da Fé, redigiu ainda uma Nota com algumas indicações para o Ano da Fé, entre as quais
pede aos membros dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica, a
contribuição dos próprios carismas na obra da nova evangelização:
Particularmente desafiante foi a homilia da celebração do dia da vida consagrada no dia
02 de fevereiro de 2013, na qual o Papa Bento XVI desejou, especialmente aos consagrados,
que suas vidas tenham sempre o “sabor da parusia evangélica”, para que neles “a Boa Notícia
seja vivida, testemunhada, anunciada e brilhe como Palavra de verdade”. Em outras palavras
podemos dizer que, da pessoa consagrada, espera-se que ela seja a “sede” da parusia na terra,
que nela a Boa Notícia tome carne, seja palpável, visível e que a evangelização aconteça,
sobretudo e em primeiro lugar, não pela pregação, mas pela irradiação da atuação do próprio
Cristo presente em suas vidas.
No decorrer da história, sobretudo no seu início, o núcleo central da vida consagrada era
muito nítido. Ela nasceu exatamente quando a Igreja vivia sua primeira grande crise3
a qual, o
Papa Bento XVI chama hoje de "desertificação" espiritual, ou seja, ausência do primado do
Absoluto. Naquele contexto os Padres e Madres do deserto entendiam que o maior “serviço”
que a vida eremítica ou cenobítica podia prestar à Igreja era a vivência radical da aliança do
batismo, que se tornava uma espécie de “memória”, de “sinal” do primado de Deus. Só olhando
para seu modo de viver, sem que eles pronunciassem sequer uma palavra, os outros membros
da Igreja eram automaticamente recordados da sua aliança batismal e impelidos a vivê-la na
comunhão com o Senhor. Foi por isso que sem demora os membros da igreja, bispos, clero e
leigos iam “ao deserto” consultar os consagrados porque percebiam neles pessoas de
intimidade com Deus e conhecedores especializados da Sua vontade.
Se a Igreja, na pessoa do Santo Padre, dirige-se à vida consagrada pedindo a
contribuição da força dos próprios carismas na sua missão desafiadora de evangelizar um
mundo em crise por causa da crescente secularização, não será este um apelo à conversão da
própria vida consagrada, nas pegadas de Cristo?
Ficar inertes ou indiferentes a estes apelos significa negligência da própria vocação e
infidelidade ao chamado. Por outro lado surgem interrogações tais como: em que consiste o
núcleo central, a essência e os apelos da nova evangelização no Magistério do Papa Bento XVI e
como as comunidades de Vida Consagrada podem responder às suas interpelações?
Este trabalho é uma contribuição para escutar a voz do Espírito que, sempre de novo,
convoca seus consagrados à conversão e à missão de anunciar a Boa Nova de forma a se fazer
entender por todos. Ele averigua a Nova Evangelização no pensamento do Magistério do Papa
Bento XVI trazendo os temas recorrentes que compõe os conteúdos, as exigências e
interpelações da nova evangelização bem como as características básicas de uma metodologia
para a nova evangelização. Além do mais, correlaciona-os com a atuação dos consagrados e
consagradas na Igreja apontando possíveis sugestões para aplicação na vida e missão dos
Consagrados e Consagradas.
METODOLOGIA
O método utilizado é essencialmente a coleta de dados e informação com pesquisa
bibliográfica nos documentos e pronunciamentos de Bento XVI. Os principais textos analisados
serão as três Encíclicas: Deus Caritas Est, Spe Salvi, Caritas in Veritate; as Exortações
Apostólicas: Sacramentum Caritatis, Verbum Domini, Africae Munus; bem como, as duas cartas
em forma de Motu Proprio Ubicumque et semper e Porta fidei; as catequeses públicas, as
audiências gerais e homilias de Bento XVI referentes à Nova Evangelização e ao Ano da Fé.
Mesmo tendo delimitado a bibliografia aos escritos de Bento XVI durante seu magistério pontifício, servi-me de alguns pronunciamentos do então Cardeal Joseph Ratzinger, pois,
segundo Monda,
Joseph Ratzinger permaneceu o mesmo, sempre: um homem simples, um sacerdote
“acessível” que está sempre “a caminho”, que se move em direção aos outros. Mesmo
como Papa, um dos aspectos que mais impressionou foi sua capacidade deste distinto
teólogo alemão de saber falar com todos os interlocutores, conseguindo sempre
colocar-se ao nível do ouvinte, simplificando, sem reduzir, o significado de sua
mensagem (2013, p.32).
A IDÉIA DE UMA “NOVA EVANGELIZAÇÃO”
O tema “nova evangelização” teve seu auge no Pontificado de João Paulo II,
especialmente na última década do segundo milênio. Quando parecia que ele tinha
desaparecido ou simplesmente passado para a normalidade do vocabulário pastoral, eis que,
surpreendentemente, Bento XVI o recoloca no centro do seu magistério. Cria um Conselho
Papal para sua promoção, convoca um Sínodo Extraordinário dos Bispos e proclama o Ano da
Fé para dar impulso à nova evangelização.
Para chegar ao núcleo central da nova evangelização no magistério de Bento XVI e suas
interpelações para a vida consagrada, faz-se necessário situá-la no processo da renovação
eclesial do Concílio Vaticano II, bem como na continuidade da obra da nova evangelização de
João Paulo II de quem Bento XVI, então Cardeal Joseph Ratzinger, foi seu exímio colaborador.
No ano de 2000, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal Joseph
Ratzinger, também se expressou sobre a necessidade de uma nova evangelização e apontou
alguns momentos importantes e seus elementos estruturais. Disse, já naquele tempo, entre
outras coisas, que
apesar da contínua evangelização da Igreja, uma grande parte da humanidade de hoje não
encontra nela o Evangelho, isto é, uma resposta válida à questão: como viver? Por isso,
estamos procurando além desta evangelização permanente, que nunca foi e não pode ser
interrompida - uma nova evangelização, capaz de chegar para o mundo, não abrangido pela
evangelização «clássica» (Intervenção no Congresso dos Catequistas e Professores de religião
10.12.00).
Eis por que se faz necessário:
Para além dos métodos tradicionais de pastoral, sempre válidos, que a Igreja procure lançar
mão de novos métodos, valendo-se também de novas linguagens, apropriadas às diversas
culturas do mundo, para implementar um diálogo de simpatia e amizade que se fundamenta
em Deus que é Amor ( Homilia 28 .10. 12).
Receber a Boa Nova do Evangelho é um direito de cada pessoa e anunciá-lo de modo
que todos possam recebê-lo é missão intrínseca da Igreja, pois “todos têm necessidade do
Evangelho; o Evangelho destina-se a todos e não apenas a um círculo determinado, e, portanto
somos obrigados a procurar novos caminhos para levar o Evangelho a todos” (Ratzinger
Intervenção no Congresso dos Catequistas e Professores de religião, 10.12.2000)
1. Origem e significado do termo “nova evangelização”
A evangelização, de acordo com o mandato de Cristo, é o anunciar da Boa Nova da
Salvação a todos as pessoas. A partir do mistério Redentor de Cristo podemos notar que a
evangelização é um processo integral, que começou com a Encarnação através da Cruz até a
Ressurreição de Cristo. Tudo isso forma uma totalidade, mas o elemento básico dessas
atividades é a "proclamação da palavra". Jesus, no cumprimento da sua missão na terra, disse
de si mesmo: “tenho que levar a Boa Nova do Reino de Deus também às outras cidades, porque
para isso fui enviado” (Lc 4,43). Jesus Cristo cumpriu esta missão, para o qual ele foi enviado à
terra pelo Pai, através de sua vida e ensinamentos. Depois transmitiu-a aos Apóstolos, os quais
deveriam guardar este depósito e desenvolvê-lo na Igreja, porque a Igreja tem seu início com a
evangelização de Jesus.
Embora tendo sua raiz na palavra “evangelho”, o termo “Evangelização” não se
encontra na Bíblia. Ela entrou para a linguagem da Igreja, de maneira tímida, a partir do
Concílio Vaticano II, sobretudo nas Constituições Lumen Gentium e Gaudium et Spes e no
Decreto Ad Gentes como sinônimo da palavra “missão”. Segundo o Papa Bento XVI, no
Concílio Vaticano II, estava presente um fervor no que se referia à missão de evangelizar:
havia uma tensão emocionante, em relação à tarefa comum de fazer resplandecer a verdade
e a beleza da fé no hoje do nosso tempo, sem sacrificá-la frente às exigências do presente,
nem mantê-la presa ao passado: na fé ecoa o eterno presente de Deus, que transcende o
tempo, mas que só pode ser acolhida no nosso hoje, que não torna a repetir-se (Homilia.
11.10.12).
O Terceiro Sínodo Ordinário dos Bispos, em 1974, quando trouxe à tona a essência do
Concílio Vaticano II sob o prisma da evangelização, sublinhou especificamente seus conteúdos
pertinentes. Em resultado, um ano depois, em 1975, o Papa Paulo VI escreveu a grande
Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi identificando a “evangelização” com o princípio de
toda a ação da Igreja e destacando que é algo “inerente à natureza da Igreja” (NE 15), é a razão
da sua existência, pois “ela existe para evangelizar” (NE 14).
A partir de então o termo “evangelização” entrou para a consciência da Igreja, tornou-se
atual em teologia e a mais comum definição de “Igreja” sendo muitas vezes usado,
simplesmente, com o significando do conjunto de atividades e até substituindo termos como
"apostolado" e “pastoral”, etc.
No entanto, foi durante as deliberações do Terceiro Sínodo dos Bispos em 1974, sobre a
evangelização no mundo contemporâneo, quando apareceu o assunto da necessidade de,
como que uma “reevangelização" das pessoas que têm sido batizadas, porém, não vivem o seu
batismo ao lado das que se recusam de receber o anúncio e não acreditam:
Secularismo ateu e ausência de prática religiosa encontram-se entre os adultos e entre os
jovens, nas elites e nas massas, em todos os setores culturais, no seio das antigas e das jovens
Igrejas. A ação evangelizadora da Igreja, que não pode ignorar estes dois mundos nem ficar
parada diante deles, tem de procurar constantemente os meios e a linguagem adequados
para lhes propor a revelação de Deus e a fé em Jesus Cristo (EN 56).
Embora não fosse ainda usado o termo "nova evangelização", vê-se claramente a
preocupação da Igreja sobre a necessidade de uma nova evangelização dos batizados que
abandonaram a fé.
O termo entrou nos ensinamentos da Igreja através da encíclica Redemptoris missio do
Papa João Paulo II. Mas João Paulo II expressou, pela primeira vez, o termo “nova
evangelização” durante a primeira visita à sua Pátria, a Polônia, em 1979, na cidade de Nowa
Huta5
:
Iniciou uma nova evangelização, quase como se se tratasse de um segundo anúncio, embora
na realidade seja sempre o mesmo. A cruz está erguida sobre o mundo que gira.
Agradecemos hoje, diante da cruz de Mogila, da cruz de Nowa Huta, este novo início da
evangelização aqui verificada. E pedimos todos que frutifique, tal como a primeira — ou
melhor, ainda mais (Homilia. 09. 06.79).
Desde aquele momento, nas suas homilias e pronunciamentos encontra-se o tema da
“nova evangelização”, sobretudo nas viagens apostólicas ao continente latino-americano,
depois na Europa. Também durante a 3ª peregrinação para sua Pátria, o Papa João Paulo II
recordou que a Polônia, assim como toda a Europa Cristã, precisa de uma “nova evangelização”
(Homilia da missa de encerramento do Congresso Eucarístico Nacional, Polônia. 14.06.1987)
Na Redemptoris missio o Papa João Paulo II define e a nova evangelização como o
anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo entre aqueles batizados, que perderam “o sentido vivo da
fé ou, simplesmente não se consideram mais como membros da Igreja, levando uma vida
afastada de Cristo e seu Evangelho" (n˚. 33). Assim, para João Paulo II, são os destinatários que
definiam as formas de uma única missão da Igreja: para as nações ou grupos que ainda não
crêem em Cristo, onde não aconteceu a proclamação do Evangelho aplica-se a missões ad
gentes; para as pessoas e grupos sociais, que já crêem em Cristo, a pastoral; para o povo que
vive nas regiões de antiga evangelização, que perderam o sentido da fé, ou não se consideram
mais membros da Igreja, a nova evangelização. Por conseguinte, é evidente que os
destinatários da nova evangelização são pessoas batizadas, que permanecem à margem da vida
cristã e estão levando a vida diferente da de Cristo e o seu Evangelho. É aquele que foi
batizado, mas a sua fé deixou de desempenhar um papel importante, ou na sua vida cotidiana
vive uma dicotomia entre a fé proclamada e vivida.
A nova evangelização, no magistério do Papa João Paulo II caracterizou-se como nova
nos métodos, nova nas expressões. Dizia que para as pessoas que estão fora da Igreja, tem que
procurar métodos específicos, a fim de poder devolvê-los para Cristo. Não especificava, mas
apontou especialmente para os meios de comunicação social. Falando sobre o novo ardor,
referia-se à auto evangelização da Igreja em geral e daqueles que são chamados a anunciar a
Boa Nova. Quanto às expressões, nova no jeito de apresentar os conteúdos, mas não novos
conteúdos, pois não há um novo Evangelho. Os conteúdos permanecem os mesmos, aqueles
que derivam da Revelação. O que pode haver é colocar em evidência conteúdos que no
passado foram pouco destacados, que permaneceram na sombra ou não foram valorizados. Foi
assim que João Paulo II insistia que a nova evangelização deve anunciar não só na verdade
sobre Deus, mas também a verdade sobre o homem, a verdade sobre a revelação de Deus
realizada definitivamente em Jesus Cristo e a verdade completa sobre o homem baseada no
Evangelho. Em síntese, portanto, os conteúdos da nova evangelização são Deus e o homem.
João Paulo II insistia na nova evangelização porque na Europa apareceu uma nova
situação. Nos países da Europa Central e Oriental o comunismo caiu. O Papa João Paulo II
chama isso de um sinal do tempo. Mesmo que caiu o muro de Berlim, no entanto permaneceu
um patrimônio específico, uma mudança de mentalidade, a perda de sensibilidade nos contatos pessoais, a degradação social e econômica.
A Europa depois do ano1989 era constituída de países em que o Evangelho tinha sido
reprimido e países onde o Evangelho tinha sido esquecido. Daí o grande chamado do Papa João
Paulo II, para começar uma nova evangelização "ad gentes" nos países da Europa Oriental e
despertar a fé esquecida na Europa Ocidental. Em cada uma dessas partes da Europa aconteceu
algo estranho: no Leste, a pessoa tornou-se presa de um sistema sócio-político, e no Oeste, ela
foi dedicada à prosperidade. Na Europa Oriental foi publicada a “morte de Deus” através da
ideologia e na Europa Ocidental, anunciada a morte de Deus sob a influência da filosofia e
secularidade. Em síntese, o europeu do século XX era uma pessoa, para a qual Deus
permaneceu fora do seu horizonte de pensamento. Portanto, a tarefa da nova evangelização: é
restaurar para a Europa os valores cristãos, ou melhor, devolver à fé, sua alma.
2. A Nova Evangelização no Magistério de Bento XVI
Se para João Paulo II, a nova evangelização destinava-se particularmente aos países
descristianizados da antiga evangelização, para o Papa Bento XVI, ainda que tenha
humildemente continuado o programa de seu antecessor, a nova evangelização diz respeito a toda a vida da Igreja. Tal visão foi claramente explicitada na homilia da santa missa para a
conclusão da XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a “Nova Evangelização
para a transmissão da fé” em 28.10.2012. A evangelização deve estar presente na vida toda da
Igreja. Na pastoral ordinária convocando-a para ser “mais animada pelo fogo do Espírito a fim
de incendiar os corações dos fiéis que frequentam regularmente a comunidade”; na missão ad
gentes sublinhando a necessidade de um renovado dinamismo missionário, pois é dever da
Igreja evangelizar e é direito de cada pessoa conhecer Jesus Cristo. Na ocasião, recolhendo os
frutos do Sínodo acima citado, disse que há muitos ambientes na África, na Ásia e na Oceania,
onde os habitantes aguardam o primeiro anúncio do Evangelho. E, por fim, a nova
evangelização diz respeito ao novo impulso que lança a Igreja para além da sua pastoral
tradicional, ao encontro das pessoas batizadas que, porém, não vivem as exigências do
Batismo, a luz da sua fé se debilitou, se afastaram de Deus deixando de O considerarem
relevante na própria vida e estão afastadas da comunidade. Este terceiro aspecto da missão da
Igreja, desafia-a para procurar novos métodos, novas linguagens que propiciem um diálogo de
simpatia e amizade fundamentado em Deus que é Amor, a fim de que estas pessoas encontrem
de novo Jesus Cristo, redescubram a alegria da fé e voltem à prática religiosa na comunidade
dos fiéis.
Bento XVI, mostra ainda que a nova evangelização diz respeito a toda vida da Igreja
porque a globalização provocou um grande deslocamento de populações e houve uma
globalização de mentalidade em que “os processos da secularização e de uma difundida
mentalidade niilista, em que tudo é relativo, marcaram profundamente a mentalidade comum”
bem como a globalização dos destinatários, pois em todos os continentes se encontram
pessoas a quem se impõe a necessidade do primeiro anúncio, como também os
“descristianizados” que necessitam de um novo encontro com Jesus Cristo e a redescoberta da
alegria de crer. É por esta razão que insiste também que os novos métodos e novas linguagens
devem ser apropriados às diversas culturas do mundo.
A nova evangelização faz-se necessária também para os fiéis que frequentam
regularmente a comunidade porque estes cristãos não estão imunes dos movimentos históricos do secularismo e relativismo e entre eles não poucos também vivem a fé de modo passivo e
privado, rejeitam o esforço da educação para a fé, há dicotomia entre vida e fé.
Com efeito, no nosso tempo é necessária uma renovada educação para a fé, que inclua sem
dúvida um conhecimento das suas verdades e dos acontecimentos da salvação, mas,
sobretudo que nasça de um encontro verdadeiro com Deus em Jesus Cristo, do amá-lo, do ter
confiança nele, de modo que a vida inteira seja envolvida por Ele (Homilia 24.10.2012).
A nova evangelização é recomeço da missão. Segundo dados estatísticos fornecidos pelo
Jaime C. Patias6
, assessor da Pontifícia União Missionária, somando os cristãos de todas as
denominações, somente 3% estão ligados a uma comunidade, 27% são batizados, mas vivem
desligados da comunidade e da vida cristã e 70% ainda esperam pelo primeiro anúncio:
Nas explicitações de Bento XVI, percebe-se que a preocupação principal da nova
evangelização, não é o regresso à Igreja ou “arrebanhamento” de grandes multidões para
dentro da Igreja, mas a de dar o verdadeiro sentido para a vida de cada pessoa, a qual tem o
direito de receber o anúncio do Evangelho:
A vida é muitas vezes levada com superficialidade, sem ideais claros nem esperanças sólidas,
no contexto de vínculos sociais e familiares fluidos, provisórios. Sobretudo as novas gerações
não são educadas para a busca da verdade e do sentido profundo da existência, que
ultrapasse o contingente, para a estabilidade dos afetos, para a confiança. Ao contrário, o relativismo leva a não ter pontos firmes, suspeita e volubilidade provocam rupturas nos
relacionamentos humanos, enquanto a vida é vivida com experiências que duram pouco, sem
assunção de responsabilidade (Audiência Geral, 17.10.12).
Assim, o objetivo da nova evangelização num mundo em rápida mudança refere-se a
dois aspectos o doutrinal (fides quae), e o experiencial (fides qua). Quanto ao primeiro aspecto,
o doutrinal, se trata, não de conteúdos estáticos, mas que dizem respeito à vivência e consiste
em:
percorrer um caminho para retomar e aprofundar as verdades centrais da fé sobre Deus, o
homem, a Igreja e toda a realidade social e cósmica, meditando e ponderando sobre as
afirmações do Credo. E gostaria que fosse claro que estes conteúdos ou verdades da fé (fides
quae) se relacionam diretamente com a nossa vida (Audiência Geral,17.10.12).
Ao que se refere ao segundo aspecto, o experiencial, trata-se de um “novo encontro
com o Senhor, o único que dá sentido profundo e paz para a nossa existência; para favorecer a
redescoberta da fé, a fonte de graça que traz alegria e esperança na vida pessoal, familiar e
social” (BENTO XVI, Audiência Geral 17.10.12) e “juntamente com o sentido da vida, descobrir a
própria arte de viver” (BENTO XVI, Audiência Geral 07.11.12). Se no primeiro aspecto se trata
da razão, da inteligência, este segundo aspecto interfere no sentir, no coração e na prática da
vida:
Os conteúdos ou verdades da fé (fides quae) se relacionam diretamente com a nossa vida;
exigem uma conversão da existência, que dá vida a um novo modo de crer em Deus.
Conhecer Deus, encontrá-lo, aprofundar os traços da sua Face põe em jogo a nossa vida, pois
Ele entra nos dinamismos profundos do ser humano (Audiência Geral, 07.11.12).
Vivemos verdadeiramente em uma época na qual é necessária nova evangelização; uma
época na qual o único Evangelho deve ser anunciado em sua racionalidade grande e imutável,
e, juntamente, naquela sua potência que supera aquela racionalidade, de modo tal a alcançar
de maneira nova o nosso pensar e a nossa compreensão (Luz do Mundo, 2011. Pg. 168).
Segundo Bento XVI, a nova evangelização pode contar com grandíssimas forças de apoio
que estão despontando apesar do secularismo e relativismo. Uma grande força é o fato de, apesar da secularização, haver tantos crentes que buscam saciar sua sede de Deus mesmo em
fontes que não saciam. Outro sinal é o reconhecimento de chefes por nações, de que, sem uma
“autoridade religiosa”, isto é, sem Deus, o mundo não pode funcionar. E um terceiro sinal é a
ciência reconhecendo seus limites. Muitos cientistas afirmam que “o conjunto das coisas deve
ter vindo de algum lugar e que devemos, portanto, colocar esta pergunta” ( 2011. Pg. 168).
REALIDADES QUE CLAMAM POR UMA “NOVA EVANGELIZAÇÃO”
Para conhecer o núcleo central, a essência, os apelos da nova evangelização bem como
seus conteúdos, suas exigências e interpelações faz-se necessário aprofundar as realidades que
clamaram pela Nova Evangelização. Por isso esta terceira parte será dedicada a analisar o
contexto social e eclesial, bem como o porquê, de hoje, depois de cinquenta anos de um
Concílio que foi um verdadeiro sopro do Espírito Santo, haver uma “profunda crise de fé” (PF 2),
e isto, não só na vida dos não cristãos, mas na vida dos cristãos e até dos consagrados.
1. Contexto Social: o desaparecimento da Luz
“Eu sou a luz do mundo” (Jo 8, 12), “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5, 14). É misterioso e
magnífico o fato que Jesus tenha dito de Si próprio e de cada um de nós a mesma coisa, ou seja,
que somos luz. Impressionante é também como o tema da luz se liga à divindade, não só nas
Escrituras7
, mas também no mundo pagão onde se desenvolveu o culto ao deus sol. Os cristãos
reconheceram que a única e verdadeira luz que ilumina os horizontes da vida no tempo e na
eternidade, que “dá sentido pleno à história do mundo e do homem começa a resplandecer na
gruta de Belém” (Audiência, 12.12.12). Fazendo coincidir o Natal com a festa do deus sol,
anunciam ao mundo pagão que Jesus Cristo é “Sol nascente que nos veio visitar” (Lc 1, 78), “a
luz que ilumina as nações” (Lc 2, 2); o “verdadeiro Sol”, no dizer de São Cipriano; o único,
segundo São Justino, pelo qual se doa até a própria vida (cf. LF 2).
O homem, de fato, caminha sempre em busca da luz, embora nem sempre encontre o
caminho que conduz à verdadeira luz. Prova disto é que nos tempos modernos, o homem,
orgulhoso do seu saber, considerou a verdadeira luz, a luz da fé, como treva e, seguindo sua
razão separada da fé, caminhou para a obscuridade metendo a humanidade no temor do
desconhecido (cf. LF, 2).
Secularização, relativismo, individualismo, desertificação espiritual, ateísmo prático, são
as expressões mais usadas por Bento XVI para descrever o estado de escuridão que se encontra
uma sociedade que perdeu sua referência a Deus. Segundo ele, no passado, no Ocidente, a
sociedade considerava-se cristã. No cotidiano movia-se a numa atmosfera de fé, referia-se a
Deus e “quem não acreditava devia justificar a própria incredulidade” (Audiência Geral,
14.11.2012). Mas, o mundo se modificou. A sociedade passou por uma profunda
transformação, também em relação a um passado recente, e em movimento contínuo:
“Vivemos numa época em que são evidentes os sinais do secularismo. Deus parece ter
desaparecido do horizonte de várias pessoas ou ter-se tornado uma realidade diante da qual
o homem permanece indiferente” (Audiência Geral, 11.05.2011). “Os processos da
secularização e de uma difundida mentalidade niilista, em que tudo é relativo, marcaram
profundamente a mentalidade comum” (Audiência Geral, 17.10. 2012).
Agora, quem crê é que “deve ser capaz de dizer a razão da sua fé” (Audiência
Geral,14.11.2012). Desenvolveu-se um tipo de cultura que “educou a mover-se só no horizonte
das coisas, do realizável, a acreditar unicamente naquilo que se vê e se toca com as próprias
mãos” (Audiência Geral,24.10.2012). O homem, no decorrer da história, especialmente no
último século, tem feito incríveis descobertas. Os êxitos da técnica, do mundo da planificação,
do cálculo exato e da experimentação, em síntese, o saber da ciência, tem sido importantíssimo
para a vida do homem e é um grande bem a favor da vida. No entanto:
(...) juntamente com tantos sinais de bem, aumenta ao nosso redor um certo deserto
espiritual. Às vezes tem-se como que a sensação, a partir de certos acontecimentos dos quais
recebemos notícias todos os dias, que o mundo não caminha rumo à construção de uma
comunidade mais fraterna e mais pacífica; as próprias ideias de progresso e de bem-estar
mostram também as suas sombras, (...) o homem não parece ter-se tornado verdadeiramente
mais livre, mais humano; subsistem muitas formas de exploração, de manipulação, de
violência, de prepotência, de injustiça... (Audiência 24.10.2012).
O iluminismo excluiu Deus revelado da sociedade, criticou fortemente a religião,
considerando-a como treva. Emergiram os sistemas políticos ateus disseminando a ideia de que
Deus é uma projeção ilusória do desejo humano, que leva os homens à alienação. As utopias
das sociedades perfeitas foram projetadas como livres de Deus, reduzidas somente à dimensão
horizontal. Tais ideologias desencadearam os totalitarismos com as mais trágicas consequências
de toda história e a crise de valores que vemos e vivemos hoje.
No século XX, o processo de secularização se deu “sob a bandeira da autonomia
absoluta do homem”. A centralidade de Deus foi substituída pela centralidade do próprio “eu”.
O homem tornou-se “a medida e o artífice da realidade, mas empobrecido do seu ser criatura
«à imagem e semelhança de Deus” (Audiência Geral, 14.11.2012). Com tal atitude o homem
conheceu sérias consequências:
Obscurecendo a referência a Deus obscureceu-se também o horizonte ético, abrindo espaço
ao relativismo e confirmando-se uma concepção ambígua da liberdade que em vez de ser
liberatória acaba por ligar o homem a ídolos (Audiência Geral, 14.11.2012).
A experiência do século XX, com as duas trágicas guerras mundiais, mostrou que sem
referência a Deus, “o homem pôde deslanchar um ciclo de morte e terror, mas não consegue
interrompê-lo” (Homilia 13.05.10). Ele mesmo pôs em crise aquele progresso que a razão
autônoma do homem sem Deus parecia poder garantir:
Olhando para a história recente, malogrou a previsão de quem, desde a época do Iluminismo,
preanunciava o desaparecimento das religiões e exaltava uma razão absoluta, separada da fé,
uma razão que teria esmagado as trevas dos dogmatismos religiosos e dissolvido o “mundo
do sagrado”, restituindo ao homem a sua liberdade, a sua dignidade e a sua autonomia de
Deus (Audiência Geral, 11.05.2011).
O saber da ciência, embora seja importante para a vida do homem, sozinho não é
suficiente. Os homens cansaram-se do racionalismo puro, da visão puramente horizontal,
material da vida humana. A dimensão religiosa que o homem tentou sufocar com os êxitos da
técnica, do mundo da planificação, do cálculo exato e da experimentação, veio à tona,
reclamando espiritualidade. Há um despertar para o sentido religioso, uma redescoberta do
valor do sagrado para a vida do homem. Por outro lado, “aumenta o número daqueles que se
sentem desorientados e, na tentativa de ir além de uma visão apenas horizontal da realidade, estão dispostos a crer em tudo e no seu contrário” (Audiência, 24.10.2012). As questões
fundamentais sobre a vida estão se sobressaindo e o o homem se pergunta cada vez mais: “Que
sentido tem viver? Há um futuro para o homem, para nós e para as novas gerações? Para que
rumo orientar as opções da nossa liberdade, para um êxito bom e feliz da vida? O que nos
espera além do limiar da morte?” (Audiência, 24.10.2012).
No entanto, falta uma adequada educação para a fé, “que inclua sem dúvida um
conhecimento das suas verdades e dos acontecimentos da salvação, mas, sobretudo, que nasça
de um encontro verdadeiro com Deus em Jesus Cristo. É o fato de amá-lo, de ter confiança
nele, de modo que a vida inteira seja envolvida por Ele (Audiência, 24.10.2012), que conduz à
experiência do encontro pessoal e comunitário com a pessoa de Jesus Cristo (Cf. DCE 1; DA 11).
Contudo, o atual despertar para o sentido do sagrado desembocou num pluralismo religioso.
Construiu-se o “supermercado” da religião moldando a mentalidade de que cada um pode
escolher o que mais satisfaz, momentaneamente, sua necessidade religiosa, sem preocupar-se
com a verdade. Na preparação do Sínodo sobre a Nova Evangelização, em todos os Continentes
foram evidenciados sinais graves da relativização da fé. Bento XVI explicita-os:
Uma fé vivida de modo passivo e privado, a rejeição da educação para a fé, a ruptura entre
vida e fé. Muitas vezes o cristão não conhece nem sequer o núcleo central da própria fé
católica, do Credo, de modo a deixar espaço a certo sincretismo e relativismo religioso, sem
clareza sobre as verdades nas quais crer e sobre a singularidade salvífica do cristianismo. Hoje
não está muito distante o risco de construir, por assim dizer, uma religião personalizada.
Assim, a vida é muitas vezes levada com superficialidade, sem ideais claros nem esperanças
sólidas, no contexto de vínculos sociais e familiares fluidos, provisórios. Sobretudo as novas
gerações não são educadas para a busca da verdade e do sentido profundo da existência, que
ultrapasse o contingente, para a estabilidade dos afetos, para a confiança. (Audiência Geral,
17.10. 2012).
Tal situação gerou um fenômeno mais complicado e desafiante para a evangelização
chamado ateísmo “prático”, classificado por Bento XVI como um perigo para a fé:
No nosso tempo verificou-se um fenômeno particularmente perigoso para a fé: de fato, existe
uma forma de ateísmo que definimos «prático», no qual não se negam as verdades da fé ou
os ritos religiosos, mas simplesmente se consideram irrelevantes para a existência quotidiana,
destacadas da vida, inúteis. Então, com frequência, cremos em Deus de modo superficial, e
vivemos «como se Deus não existisse» (etsi Deus non daretur). Mas, no final este modo de
viver resulta ainda mais destrutivo, porque leva à indiferença à fé e à questão de Deus
(Audiência, 14.12.2012).
A fé não interfere no real da vida, nas decisões, no jeito de viver, nas atitudes. Ela foi
relegada a uma espécie de “gaveta” que é aberta em alguns momentos ou a um deus fechado
no templo ao qual se visita de vez em quando e ao qual se recorre quando surge uma
necessidade.
Há uma fuga da verdadeira experiência de Deus, o Deus encarnado, real, o encontro
com a pessoa de Jesus Cristo, porque “conhecer Deus, encontrá-lo, aprofundar os traços da sua
Face põe em jogo a nossa vida, pois Ele entra nos dinamismos profundos do ser humano”
(Audiência Geral, 14.11.2012).
A vida cristã tem uma meta alta: assimilar-se a Cristo. E o desfecho desta meta é a lei do
grão de trigo, ou seja, a participação no mistério da cruz que, quando omitida, se omiti a
essência do cristianismo (cf. 1 Cor 2, 2). Esta linguagem não soa bem aos ouvidos do homem
moderno (RATZINGER. Intervenção, 10.12.2000) que faz tentativas de saciar sua sede em poços
que lhe parecem mais cômodos e alcançáveis. Por medo de despojar-se de si mesmo e abraçar
o Cristo, continua “morrendo” de sede. No entanto, Ratzinger afirma que o próprio secularismo
e relativismo são uma forma de manifestar sua sede de infinito e de comunhão com um
“Alguém” que, de fato, preencha seu vazio:
Na realidade todos temos sede do infinito: de uma liberdade infinita, de uma felicidade sem
limites. Toda a história das revoluções dos últimos dois séculos só se explica desta forma. A
droga explica-se assim. O homem não se contenta com soluções abaixo do nível da
divinização. Todos os caminhos oferecidos pela "serpente" (Gn 3, 5), que significa pela
sabedoria mundana, falham. O único caminho é a comunhão com Cristo, realizável na vida
sacramental. (Intervenção, 10.12.00).
Quanto mais o ser humano busca saciar sua sede de infinito em fontes equivocadas,
mais se afunda no lamaçal do mal, pois sem Deus, o homem jamais encontrará sua plenitude e
viverá numa luz ilusória. Prova disso é a situação dos países ricos materialmente que, para
preencher as insatisfações das suas sociedades abastadas, se servem dos países pobres para
obter droga e turismo sexual. Comentando o relato dos bispos da América Latina, Bento XVI diz:
Assim caracterizado, se pode comparar o homem contemporâneo como o peregrino do
deserto que vive o processo de miragem. Ele se engana pensando que a luz refletida pelo
objeto, é um fenômeno real tamanha é sua sede de encontrar a água vida. Bento XVI vê, neste
fenômeno, o terreno propício para a nova evangelização:
(...) é precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos
redescobrir a alegria de crer, a sua importância vital para nós homens e mulheres. No deserto
é possível redescobrir o valor daquilo que é essencial para a vida; assim sendo, no mundo de
hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido último da vida, ainda que muitas vezes
expressos implícita ou negativamente (Homilia, 11.10.2012)
Mas o que precisa para que este “deserto” interior e exterior que permeia o coração do
homem e o mundo possa ser regado com o “único necessário” capaz de flori-lo?
E no deserto existe, sobretudo, necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias vidas,
indiquem o caminho para a Terra Prometida, mantendo assim viva a esperança. A fé vivida
abre o coração à Graça de Deus que liberta do pessimismo. Hoje, mais do que nunca,
evangelizar significa testemunhar uma vida nova, transformada por Deus, indicando assim o
caminho. (...) uma peregrinação nos desertos do mundo contemporâneo, em que se deve
levar apenas o que é essencial: o Evangelho e a fé da Igreja, dos quais os documentos do
Concílio Vaticano II são uma expressão luminosa... (Homilia, 11.10.2012).
Precisa-se de pessoas de fé que com as “próprias vidas” indiquem o caminho. Pois
“evangelizar não é simplesmente uma forma de falar, mas uma forma de viver: viver em escuta
e fazer-se voz do Pai. ‘Não falará de Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido’, diz o Senhor
acerca do Espírito Santo (cf. Jo 16, 13)” (RATZINGER. 10.12.2000). Na sua gênese, não foi
precisamente esta a missão da vida consagrada?
2. Contexto Eclesial: a opacidade da luz
Que a escuridão da secularização, do relativismo, do individualismo e do ateísmo prático
tenha dominado o espírito de muitos contemporâneos, isto já é sabido, suas causa são
conhecidas, e, para quem crê, é um forte apelo de Deus para empreender, com convicção e garra, a missão de reavivar, em toda a Igreja, o desejo ardente de anunciar novamente Cristo
ao homem contemporâneo:
Este é um dos sinais dos tempos que deve representar para nós, cristãos, um desafio urgente.
Devemos viver de modo a mostrar que o infinito de que o homem tem necessidade pode
provir somente de Deus; que Deus é nossa primeira necessidade para poder enfrentar a
tribulação deste tempo; que, em certo sentido, devemos mobilizar todas as forças da alma e
do bem a fim de que se imponha uma imagem verdadeira contra a que é falsa, e assim se
possa romper o circuito ininterrupto do mal (Luz do Mundo, pg. 84).
No entanto, que, comunidades do cinquentenário de Concílio Vaticano II, cristãos e,
mais ainda, religiosas e religiosos, dentre os quais muitos presbíteros e bispos que, por
profissão religiosa e sacramento da ordem se comprometeram publicamente a ser na Igreja
testemunhas da luz de Cristo proporcionando um modelo evangélico de vida alternativa à
mentalidade dominante, tenham permitido que tal mentalidade, não só ofusque a beleza da luz
da fé em Jesus Cristo, mas até, espelhem-na, é lamentável. “Não podemos aceitar que o sal se
torne insípido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16)” (PF 3). É por isso que a Nova
Evangelização deve partir de dentro de cada pessoa, de cada comunidade, da própria Igreja.
Dos ensinamentos e admoestações de Bento XVI, entende-se que o problema principalmente
gritante não está no fato de haver um grande número de pessoas indiferentes à fé, nem nos
que ainda não receberam o primeiro anúncio da fé, e nem mesmo nos que se declaram ateus,
ou os vivem numa luz ilusória ou até mesmo nos que vivem na imoralidade. O problema não é a
escuridão, mas a falta da luz, pois a escuridão se deixa vencer assim que a luz desponta. O
problema está nos cristãos, no clero (bispos, sacerdotes e diáconos) e principalmente em nós
religiosos e religiosas – que por profissão deveríamos exercer a missão profética na Igreja e no
mundo – mas que, “com frequência, cremos em Deus de modo superficial, e vivemos «como se
Deus não existisse» (etsi Deus non daretur)” (Audiência Geral,14.11.2012); e, ainda que
digamos acreditar e viver a nossa vocação, o estilo de vida e os nossos pensamentos não só não
irradiam a luz de Deus, mas, muito pelo contrário, refletem a mentalidade da cultura
secularizada. E isto é descristianização.
Do texto de Mc 10, 46-52, que foi o Evangelho da liturgia diária do dia 28 de outubro de
2012, na homilia da missa de conclusão do Sínodo sobre a Nova Evangelização para a
transmissão da fé, Bento XVI trouxe à luz o ícone do cego Bartimeu mostrando nele a síntese de todos os elementos da Nova Evangelização. Citando Santo Agostinho, mencionou que o fato de
Marcos referir, neste caso, não só o nome da pessoa que é curada, mas também de seu pai,
“Bartimeu, filho de Timeu”, mostra que ele era um personagem decaído duma situação de
grande prosperidade, e a sua condição de miséria devia ser universalmente conhecida e de
domínio público, pois não era apenas cego, mas um mendigo que estava sentado na beira da
estrada. Com isso Marcos não mostrou não só a ressonância do milagre, mas “como grande era
a fama da desventura que atingira o cego” (SANTO. AGOSTINHO. O consenso dos evangelistas,
2, 65, 125: PL 34, 1138). Ampliando a compreensão do ícone, Bento XVI diz:
Bartimeu não é cego de nascença, mas perdeu a vista; perdeu a luz e está ciente disso, mas
não perdeu a esperança; soube agarrar a possibilidade do encontro com Jesus e confiar-se a
Ele para ser curado sem medo de gritar: “Jesus, filho de Davi, tem misericórdia de mim!” (Mc
10, 47), e repetiu-o vigorosamente (v. 48). E quando Jesus o chama e lhe pergunta que quer
d’Ele, responde: “Mestre, que eu veja!” (v. 51). No encontro com Cristo, vivido com fé,
Bartimeu readquire a luz que havia perdido e, com ela, a plenitude da sua própria dignidade:
põe-se de pé e retoma o caminho, que desde então tem um guia, Jesus, e uma estrada, a
mesma que Jesus percorre (Homilia 28.10.2012).
O texto mostra-nos que o discípulo é aquele que, com a luz da fé, segue Jesus “pelo
caminho” (v. 52) e trazido para o contexto da Nova Evangelização:
Bartimeu poderia representar aqueles que vivem em regiões de antiga evangelização, onde a
luz da fé se debilitou, e se afastaram de Deus, deixando de O considerarem relevante na
própria vida: são pessoas que deste modo perderam uma grande riqueza, «decaíram» duma
alta dignidade – não econômica ou de poder terreno, mas a dignidade cristã –, perderam a
orientação segura e firme da vida e tornaram-se, muitas vezes inconscientemente, mendigos
do sentido da existência. São as inúmeras pessoas que precisam de uma nova evangelização,
isto é, de um novo encontro com Jesus, o Cristo, o Filho de Deus (cf. Mc 1, 1), que pode voltar
a abrir os seus olhos e ensinar-lhes a estrada (ID, ibid).
A lei da física mostra que quanto maior é a altura, tanto maior é a queda e o estrago que
ela provoca. Com toda certeza, a constatação acima, onde afirma-se que o problema está
principalmente nos religiosos e religiosas que, com frequência, creem em Deus de modo
superficial, e vivem etsi Deus non daretur, criará não pouco desconforto. Porém, a verdade é
que, pela profissão religiosa, os consagrados e consagradas, se obrigaram publicamente, viver
na dimensão da fé, viver em Deus e para Deus totalmente, com um coração indiviso:
A quem foi concedido o dom de seguir mais de perto o Senhor Jesus, é óbvio que Ele possa e
deva ser amado com coração indiviso, que se Lhe possa dedicar a vida toda e não apenas
alguns gestos, alguns momentos ou algumas atividades. O perfume de alto preço, derramado
como puro ato de amor e, por conseguinte, fora de qualquer consideração « utilitarista », é sinal de uma superabundância de gratuidade, como a que transparece numa vida gasta a
amar e a servir o Senhor, a dedicar-se à sua Pessoa e ao seu Corpo Místico. Mas é desta vida «
derramada » sem reservas que se difunde um perfume que enche toda a casa. A casa de
Deus, a Igreja, é adornada e enriquecida hoje, não menos que outrora, pela presença da vida
consagrada (VC,13).
É um ideal alto e o mundo espera que os religiosos sejam de fato especialistas de Deus.
Por isso, para a evangelização, há menos prejuízo a simples não existência de religiosos,
religiosas e, digamos também, sacerdotes e bispos, do que a existência deles crendo em Deus
de modo superficial e agindo “como se Deus não existisse”. O contratestemunho, não só não
anuncia Cristo, mas, ao contrário, anuncia que Cristo é uma mentira e resulta numa “destruição
ainda maior porque leva à indiferença à fé e à questão de Deus” (Audiência Geral, 14.11.12).
O escândalo é um mal grave porque fecha as portas a Deus para si mesmo e para todos
os que o vêm. Repetimos: na evangelização “não existe prioridade maior do que esta: reabrir ao
homem atual o acesso a Deus” (VD 2). Por isso, Jesus ofereceu um medicamento radical:
Se teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o longe de ti, porque te é
preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo todo seja lançado na geena.
E se tua mão direita é para ti causa de queda, corta-a e lança-a longe de ti, porque te é
preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo inteiro seja atirado na geena
(Mt 5,29-30).
Deus não é algo óbvio na vida de uma pessoa ou comunidade simplesmente porque está
enquadrada numa estrura eclesiástica ou religiosa. Aos fariseus e saduceus que pensavam que
fugiriam da ira de Deus só porque eram da descendência de Abraão, Joa Batista diz: “Produzi
frutos dignos de arrependimento e não penseis que basta dizer: ‘temos por pai a Abraão’. Pois
eu vos digo que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos de Abraão” (Lc 3, 9-10). Há
pessoas que não são do clero, não professaram votos religiosos, não estão em estruturas religiosas ou eclesiásticas, no entanto, vivem as vinte e quatro horas do dia na dimensão da fé.
Neste contexto, se pode aplicar à vida consagrada e ao clero, aquilo que Bento XVI disse a
respeito da sensação que o Papa tem diante do bilhão e 200 mil pertencentes à Igreja católica.
Dize ele, “existem muitos que, de fato, na realidade de seu íntimo, não fazem parte dela”. Na
mesma ocasião, recordou também que “Santo Agostinho já no seu tempo, dizia: muitos que parecem estar dentro, estão fora; e muitos que parecem estar fora, estão dentro” (Luz do
Mundo, pg 22).
Antes de ser eleito papa, o então Cardeal Ratzinger, durante a Via Crucis da Sexta - feira
da Paixão de 2005, chamava a atenção com as seguintes palavras:
Quantas vezes celebramos somente a nós mesmos, sem ao menos dar-nos conta Dele!
Quantas vezes sua Palavra é distorcida e desonrada! Quanta imundície existe na Igreja, e
juntamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! (Luz
do Mundo, pg. 53).
Nos anos 70, segundo Bento XVI, teve início uma teoria que defendia a tese de que:
“Não existe algo de mal em si. Existe apenas um mal relativo. O que é bem ou mal dependeria
das consequências”. Assim, argumentava-se que a pedofilia deveria ser considerada uma coisa
positiva. Tal teoria penetrou também na moral católica. Sutilmente desenvolveu-se a ideia de
que “o bem pode negociar com o mal” Segundo, o Papa, isto dá vazão à expansão do mal, o
que, por fim, leva o homem a não encontrar mais o limite. Ele fala claramente desta dinâmica
do mal, referindo-se à pedofilia, mas podemos transpor este ensinamento para tantas outras
formas de infidelidade:
É claro que, em geral, a pedofilia é mais uma doença; mas o fato de que pudesse enraizar-se
deste modo e expandir-se em tal medida, deveu-se também a uma situação espiritual pela
qual, na Igreja, começaram a ser colocados em discussão os fundamentos da teologia moral, o
bem e o mal. Bem e mal tornaram-se intercambiáveis, e não se encontram mais claramente
em oposição um ao outro. Em semelhante contexto, no qual tudo é relativo, e o mal de per si
não existe – existe apenas o bem relativo e o mal relativo -, as pessoas têm tendência a uma
atitude semelhante, não encontram mais limites (Luz do Mundo, pg. 57).
Segundo Bento XVI há uma luta interior histórica entre o “eu” pagão e a presença de
Deus. É preciso dar-se conta desta realidade:
Que devido ao pecado original, que está na estrutura do homem, o paganismo, de quando em
vez, ressurja nele, é uma experiência que atravessa todos os séculos. Confirma-se assim a
verdade do pecado original. O homem recai sempre para aquém da fé, torna-se pagão, na
acepção mais profunda do termo, toda vez que deseja voltar a ser unicamente ele próprio. E,
no entanto, sempre se manifesta de novo a presença divina no homem. Esta é a luta que
atravessa a história (Luz do Mundo, pg. 81)
A presença do individualismo e do ativismo na Igreja e na Vida consagrada são as
manifestações de tal paganismo. O individualismo é a centralização em si mesmo fazendo com que ninguém seja importante para ele, nem o pobre, nem o doente, nem o explorado, nem o
amigo. Só a própria pessoa será importante para si mesmo. É o “endeusamento” de si mesmo.
Uma forma de pecado original, que requer um processo de conversão urgente a fim de retornar
à centralidade de Deus na vida da Igreja e na vida consagrada.
A tendência hoje difundida a relegar a fé na esfera do privado contradiz a sua própria
natureza da Igreja. Precisamos de uma Igreja para confirmar a nossa fé e fazer experiência
dos dons de Deus: a sua Palavra, os Sacramentos, o apoio da graça e o testemunho do amor.
Assim o nosso «eu» no «nós» da Igreja poderá sentir-se, ao mesmo tempo, destinatário e
protagonista de um evento que o supera: a experiência da comunhão com Deus, que funda a
comunhão entre os homens. Num mundo no qual o individualismo parece regular as relações
entre as pessoas, tornando-as cada vez mais frágeis, a fé chama-nos a ser Povo de Deus, a ser
Igreja, portadores do amor e da comunhão de Deus para todo o gênero humano. (Audiência,
31.10.2012).
Ativismo é também uma forma de paganismo, próprio do homem que se basta si
mesmo. Por falta de conexão com o Uno, perdem-se no múltiplo de tarefas e demandas,
originadas, não em Deus, mas em si mesmo. É o fazer coisas sem sentido, isto é, sem ligação
com a fonte - como um fio elétrico e uma lâmpada que não iluminam porque não estão
conectados à fonte e querem vencer a escuridão pela agitação. No ativismo não há tempo e
espaço para a ação de Deus. Confia-se unicamente nas próprias forças e reduz-se a ação
evangelizadora a um mover-se só no horizonte das coisas, do realizável, acreditando unicamente naquilo que se vê e se toca com as próprias mãos. Tudo isso resulta no desejo
crescente de realizar-se como ser humano, com não raras buscas de poder, de posse e de
prazer.
«Não andareis vós enganadas, ignorando as Escrituras e o poder de Deus?» (Mc 12, 24). As
Escrituras convidam-nos a crer: «Felizes os que acreditam sem terem visto» (Jo 20, 29), mas
Deus – mais íntimo a mim mesmo de quanto o seja eu próprio (cf. Santo Agostinho,
Confissões, III, 6, 11) – tem o poder de chegar até nós nomeadamente através dos sentidos
interiores, de modo que a alma recebe o toque suave de algo real que está para além do
sensível, tornando-a capaz de alcançar o não-sensível, o não-visível aos sentidos. Para isso
exige-se uma vigilância interior do coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por
causa da forte pressão das realidades externas e das imagens e preocupações que enchem a
alma (Card. Joseph Ratzinger, Comentário teológico da Mensagem de Fátima, ano 2000). Sim!
Deus pode alcançar-nos, oferecendo-Se à nossa visão interior (Homilia, Fátima, 13.05.10)
Quando se fala em pastoral, é comum surgir a pergunta “o que fazer” com as pessoas
que se encontram em situações tidas como “irregulares”. Dificilmente se pergunta “o que ser” para elas. Não estaria aqui um dos pontos a ser repensado na mentalidade pastoral das nossas
comunidades?
3. Interpelações da “Nova Evangelização” para a Vida Consagrada
Por ocasião de sua visita à Alemanha, no encontro com o Comitê Central dos Católicos
Alemães em Friburgo, o Papa Bento XVI lembrou que existem programas chamados exposure8
no âmbito da ajuda aos países em vias de desenvolvimento. Neste programa, pessoas
responsáveis pela política, pela economia, pela Igreja vão viver, durante certo tempo, com os
pobres na África, Ásia ou América Latina, compartilhando a sua existência concreta de todos os
dias. É uma forma de colocar-se na situação de vida destas pessoas para olhar o mundo com os
olhos delas e, desta experiência, tirarem lições para o próprio agir solidário. E o Papa pediu aos
católicos do Comitê que imaginasse, por exemplo, se o programa exposure tivesse lugar na
Alemanha, com uma família alemã média, o que os pobres encontrariam? “Certamente - disse
ele - admirariam muitas coisas, como o bem-estar, a ordem e a eficiência. Mas, com um olhar
imparcial, constatariam também tanta pobreza: pobreza nas relações humanas e pobreza no
âmbito religioso” (Discurso. 11.09.2011).
Bento XVI, ainda como Cardeal Joseph Ratzinger, durante um congresso de catequistas e
professores de religião, falando sobre a nova evangelização, disse:
A Igreja evangeliza sempre e jamais interrompeu o caminho da evangelização. Celebra todos
os dias o mistério eucarístico, administra os sacramentos, anuncia a palavra da vida, a palavra
de Deus, empenha-se pela justiça e pela caridade. E esta evangelização dá frutos: produz luz
e alegria, dá o caminho da vida a muitas pessoas; há quem viva, muitas vezes sem saber, da
luz e do calor resplandecente desta evangelização permanente (Intervenção, Roma,
10.12.2000).
No entanto, Ratzinger continua seu discurso e afirma que tudo isto é bom e deve
continuar, mas é insuficiente. Relembra ainda que cada pessoa tem direito ao evangelho e que
temos a obrigação de procurar novos meios para que todos a ele tenham acesso:
8
“Exposure”: do inglês e significa ficar exposto de forma muito intensa, a uma alteração brusca.
Contudo, observamos um processo progressivo e preocupante de descristianização e de
perda dos valores humanos essenciais. Uma boa parte da humanidade de hoje não encontra
na evangelização permanente da Igreja o Evangelho, ou seja, uma resposta convincente à
pergunta: como viver? Eis por que procuramos, além da evangelização permanente, jamais
interrompida e que nunca se deve deter, uma nova evangelização, capaz de se fazer ouvir por
aquele mundo que não encontra o acesso à evangelização "clássica". Todos têm necessidade
do Evangelho; o Evangelho destina-se a todos e não apenas a um círculo determinado, e,
portanto somos obrigados a procurar novos caminhos para levar o Evangelho a todos
(Intervenção, Roma, 10.12.2000).
Transportando a pergunta de Bento XVI para a Vida Consagrada, poderíamos perguntar:
se o programa exposure tivesse lugar nas comunidades das congregações religiosas e, pessoas
quisessem aprender como viver o batismo encarrando a vida cotidiana numa dimensão de fé
cristã – que é dimensão básica da vida consagrada - o que encontrariam? Com certeza
encontrariam muitos valores: há eucaristia diária e outros momentos de oração comunitária,
incentivo à oração pessoal, formação, cursos, dedicação incansável ao trabalho, ao estudo, à
pastoral, engajamento nos processos da Igreja. Mas será que, muitas vezes, tudo isso não fica
reduzido a uma estrutura na qual os religiosos, apenas se enquaddram? Será que pessoas, vindas
de fora para um período, encontrariam nela a vivência de uma autêntica experiência do Amor
de Deus, amor gratuito, incondicional e eterno entre os membros da comunidade (ad intra) e
da comunidade religiosa com a comunidade Igreja e com o mundo em geral (ad extra) capaz de
proporcionar esta experiência a quem dela se aproximar? Lembro quando um professor de
Teologia explicando a dimensão escatológica da Vida consagrada, perguntava aos Religios sos:
“Quem de vocês quer levar uma pessoa à sua comunidade, hoje, para que ela experimente o
que é o céu?”.
Muitas pessoas carecem da experiência da bondade de Deus. Não encontram qualquer ponto
de contato com as Igrejas institucionais e suas estruturas tradicionais. Mas por quê? Penso
que esta seja uma pergunta sobre a qual devemos refletir muito a sério (Discurso, Friburgo,
24 09. 2011).
É comum nas assembleias, capítulos, cursos de formação das Congregações Religiosas
transparecer mais a mentalidade de uma ong que de uma comunidade de consagrados. A
provincial de uma Congregação confidenciou que em três dias de partilha sobre as realizações das comunidades, não ouviu sequer uma vez alguma das irmãs pronunciarem o nome “Jesus
Cristo”. Falando da situação da Igreja na Alemanha, Bento XVI diz:
A Igreja está otimamente organizada. Mas, por detrás das estruturas, porventura existe
também a correlativa força espiritual, a força da fé no Deus vivo? Sinceramente devemos
afirmar que se verifica um excedente das estruturas em relação ao Espírito. Digo mais: a
verdadeira crise da Igreja (...) é uma crise de fé. Se não chegarmos a uma verdadeira
renovação da fé, qualquer reforma estrutural permanecerá ineficaz (Discurso, Friburgo, 24 09.
2011).
Uma comunidade onde as pessoas possam ver e experimentar a bondade de Deus, o
amor gratuito, incondicional e eterno que revela que Deus caritas est: esta é a contribuição
principal e própria que a vida religiosa pode e deve proporcionar à ação evangelizadora da
Igreja. Este é o único ponto em que cada pessoa pode, de fato, conectar-se com Deus:
As pessoas a quem falta a experiência da bondade de Deus necessitam de lugares, onde
possam expor a sua nostalgia interior. E aqui somos chamados a procurar novos caminhos da
evangelização. Um destes caminhos poderiam ser as pequenas comunidades, onde
sobrevivem as amizades, que são aprofundadas na frequente adoração comunitária de Deus.
Aqui há pessoas que contam as suas pequenas experiências de fé no emprego e no âmbito da
família e dos conhecidos, testemunhando assim uma nova proximidade da Igreja à sociedade.
Depois, a seus olhos, aparece de modo cada vez mais claro que todos necessitam deste
alimento do amor, da amizade concreta de um pelo outro e pelo Senhor. Permanece
importante a ligação com a seiva vital da Eucaristia, porque sem Cristo nada podemos fazer
(cf. Jo 15, 5) (Friburgo. 24 09. 2011).
A caridade é a manifestação do amor trinitário de Deus. Bento XVI, começa a segunda
parte da Encíclica Deus Caritas Est, citando Santo Agostinho: “Se vês a caridade, vês a Trindade”
(19).
Conta uma história antiga, que um jovem noviço chegou ao mosteiro e lhe deram a
tarefa de ajudar os outros monges a transcrever os antigos cânones e regras da Igreja. Ele se
surpreendeu ao ver que os monges faziam seu trabalho a partir de cópias e não dos
manuscritos originais. Foi falar com A abade e explicou que, se alguém cometesse um erro
na primeira cópia, esse erro se propagaria em todas as cópias posteriores. O Abade lhe
respondeu que há séculos copiavam da cópia anterior, mas que achava bem procedente a
observação do noviço. Na manhã seguinte, o Abade desceu até as profundezas da caverna no
porão do mosteiro, onde eram conservados os manuscritos e pergaminhos originais, intocados há muitos séculos. Passou-se a manhã, a tarde e depois a noite, sem que o abade desse sinal de
vida. Preocupado, o jovem noviço decidiu descer e ver o que estava acontecendo. Encontrou o
abade completamente descontrolado, com as vestes rasgadas, batendo a cabeça
ensanguentada nos veneráveis muros do mosteiro. Espantado, o jovem monge perguntou: -
Abade, o que aconteceu?- Caridade! Caridade! Eram votos de "caridade" que tínhamos que
fazer, e não de "castidade"!
Através da ironia dessa história, transparece a verdade de que a vida consagrada precisa
voltar à essência, à fonte, ao Evangelho, à Caridade. Nota-se que houve excesso de
preocupação em cunhar a vida própria de cada congregação, suas obras, finalidades e regras de
vida, – o que não deixa de ser importante na sua medida – bem como a utilização de outras
ciências, principalmente da Psicologia na formação humana, nas questões da afetividade,
sexualidade, nos relacionamentos comunitários. Mas, por outro lado, será que não se
descuidou da formação para a essência da vida consagrada: a formação para a Caridade? Para a
Fé?
No contexto da nova evangelização e do ano da fé, na homilia da celebração da vida
Consagrada em 2 de fevereiro de 2013, o Papa Bento XVI dirigiu aos Consagrados três convites,
que constituem um verdadeiro projeto de renovação da vida consagrada.
O primeiro convite, é a volta à fonte que é Cristo através do silêncio da adoração. Estar com
Ele para agir com Ele e não para executar os próprios projetos, ainda que sejam os mais
perfeitos e talvez muito adequados para uma ONG:
[...] alimentar uma fé capaz de iluminar a sua vocação. Exorto-os por isso a recordar, como em
uma peregrinação interior, do "primeiro amor" com o qual o Senhor Jesus Cristo aqueceu o
seu coração, não por nostalgia, mas para alimentar aquela chama. E por isso, precisamos
estar com Ele, no silêncio da adoração; e, assim, despertar o desejo e a alegria de
compartilhar a vida, as escolhas, a obediência da fé, a bem-aventurança dos pobres, o amor
radical. A partir sempre novamente deste encontro de amor vocês deixam tudo para estar
com Ele e colocar-se como Ele ao serviço de Deus e dos irmãos (cf. VC 1) (Homilia,
02.02.2013).
O segundo convite, muito próprio para a situação de desencanto que a vida religiosa se
encontra. Trata-se de superar a ilusão do sucesso, dos números, e transformar a fraqueza em
força através de uma vida “kenótica”:
[...] saber reconhecer a sabedoria da fraqueza. Nas alegrias e nas aflições do tempo presente,
quando a dureza e o peso da cruz são sentidos, não tenham dúvida de que a “kenosis” de
Cristo é já vitória pascal. Precisamente no limite e na fraqueza humana, somos chamados a
viver a conformação a Cristo, em uma tensão totalizadora que antecipa, na medida do
possível, no tempo, a perfeição escatológica. Nas sociedades da eficiência e do sucesso, a sua
vida marcada pela "minoria" e a fraqueza dos pequenos, pela empatia com aqueles que não
têm voz, torna-se um evangélico sinal de contradição (ID, ibid).
O terceiro convite refere-se à principal razão de ser, da vida consagrada, a razão
escatológica, o encontro face a face com Deus:
[...] renovarem sua fé que os torna peregrinos em direção do futuro. Por sua natureza, a vida
consagrada é uma peregrinação do espírito, à procura de um Rosto que às vezes se manifesta
e às vezes se esconde: Faciem tuam, Domine, requiram (Sl 26,8). Este seja o desejo constante
de seu coração, o critério fundamental que orienta o seu caminho, seja nos pequenos passos
diários que nas decisões mais importantes (ID, ibid).
E, por fim, com um “não” Bento XVI puxa o freio daqueles que estão prontos a entrar na
onda dos que anunciam a derrota da Vida consagrada “Não se unam aos profetas da desgraça
que proclamam o fim ou o não sentido da Vida consagrada na Igreja dos nossos dias”. E diz que
a Vida religiosa é possível revestindo-se de Jesus Cristo, usando as armas da luz, permanecendo
acordados e vigilantes como exorta São Paulo (cf. Rm 13,11-14). Citando São Cromácio de
Aquiléia escreveu: "Afaste de nós, Senhor, tal perigo para que jamais nos deixemos
sobrecarregar pelo sono da infidelidade; concede-nos, porém, a sua graça e sua misericórdia,
para que possamos vigiar sempre na fidelidade a Ele. De fato, a nossa fidelidade subsiste em
Cristo” (Sermão 32, 4).
4. Equívocos na Interpretação e aplicação do Concílio Vaticano II
Por que hoje, depois de cinquenta anos de um Concílio que foi um verdadeiro sopro do
Espírito Santo, há uma “profunda crise de fé” e o “pressuposto da fé, não só deixou de existir,
mas frequentemente acaba até negado” (PF 02), e isto, não só na vida dos não cristãos, mas na
vida dos cristãos e até dos consagrados?
Na homilia da celebração da Santa missa para a abertura do “Ano da fé”, fazendo
memória do cinquentenário do Concílio Vaticano II, Bento XVI diz que houve equívocos na sua
interpretação. Segundo ele, o Concílio Vaticano II não foi um Concílio para discutir e definir
temas da doutrina, mas para tratar da tarefa comum da Igreja de como propor a Boa Nova do
Evangelho ao homem contemporâneo:
O Concílio não excogitou nada de novo em matéria de fé, nem quis substituir aquilo que
existia antes. Pelo contrário, preocupou-se em fazer com que a mesma fé continue a ser
vivida no presente, continue a ser uma fé viva em um mundo em mudança (...) O Concílio
Vaticano II não quis colocar a fé como tema de um documento específico. E, no entanto, o
Concílio esteve inteiramente animado pela consciência e pelo desejo de ter que, por assim
dizer, imergir mais uma vez no mistério cristão, para poder propô-lo novamente e
eficazmente para o homem contemporâneo (Homilia, 11.10. 2012).
Bento XVI diz que os Padres conciliares experimentaram uma “tensão emocionante”,
uma “tensão positiva” justamente porque estavam seguros da sua fé, da rocha firme em que
se apoiavam e queriam torná-la conhecida à humanidade, apresentando-a de forma legível ao
homem contemporâneo (cf. Homilia de 11.10.2012). E para sublinhar, citou o discurso de
abertura do Concílio, no qual o Bem-aventurado João XXIII disse: “É necessário que esta
doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada
de forma a responder às exigências do nosso tempo” (AAS 54 [1962], 790-791-792).
Continuando, lamentou, porém, que “nos anos seguintes, muitos acolheram
acriticamente a mentalidade dominante, questionando os próprios fundamentos do depositum
fidei, o qual infelizmente já não consideravam como próprio diante daquilo que tinham por
verdade” (Homilia de 11.10.2012).
É muito comum ainda hoje a apresentar do Concílio Vaticano II como uma novidade com
lacunas e sem continuidade com o período anterior. A intensa e decidida crítica à Igreja, com
exceção do período Apostólico e Patrístico, transmite um conceito paupérimo da história da
Igreja, faz nascer um sentimento de descrédito, desvalorização e indiferença para com a Igreja
e sua tradição, como se ela fosse mera instituição humana ou como se o Espírito Santo tivesse
tirado férias prolongadas desde o período da Patrística até o Concílio Vaticano II. Eclipsa-se a
verdade de que quem conduz a Igreja é o Espírito Santo, e justamente, quando houve mais infidelidade dentro das estruturas da Igreja, é que o Espírito Santo que “sopra onde quer” (cf.
Jo 3,8) suscitou, surpreendentemente, pessoas de gande santidade que se tornaram lâmpadas
acesas a iluminar a escuridão. Basta lembrar, por exemplo, o que vivia a Igreja no tempo em
que o Espírito fez surgir Francisco de Assis. O próprio Concílio Vaticano II é a concretização dos
movimentos que o Espírito gerou nas pessoas e nos acontecimentos ao longo deste período
dito de escuridão da história da Igreja.
Quando, com tanta facilidade somos propensos a julgar e condenar as atitudes de
pessoas e acontecimentos deste longo período entre a Patrística e o Concílio Vaticano II,
havemos de nos perguntar: E o que fizemos com o dom do Concílio Vaticano II?
Após o Concílio, durante muito tempo, os termos “ala progressista” e “ala
conservadora”, foram a expressões das divisões e intrigas entre o clero, entre religiosos e
religiosas e boa parte de cristãos mais próximos a estes. Enquanto as duas alas excluíam-se
mutuamente e lutavam, cada uma, para fazer prevalecer a própria ideia, a pessoa de Jesus
Cristo e o anúncio do Reino de Deus ficaram no escanteio. Deixou-se de captar o sopro do
Espírito da “novidade na continuidade”. Privaram-se os fiéis do direito de fazer a experiência do
encontro com a pessoa de Jesus Cristo; de propiciar a eles a instrução na fé a fim de
“comunicar Cristo a cada homem e a todos os homens”; de “fazer resplandecer a verdade e a
beleza da fé no hoje do nosso tempo”; de dar a conhecer “o depósito sagrado da doutrina cristã
de forma mais eficaz, sem sacrificá-lo frente às exigências do presente, nem mantê-lo preso ao
passado” como queria o Concílio Vaticano II (cf. Bento XVI, Homilia, 11.10.2012). E estamos
diante de uma “desertificação” espiritual, da ausência do primado do Absoluto, ou seja, da
centralidade de Deus, onde o homem perdeu seu justo lugar, e não encontra a sua colocação
na criação e nas relações com os outros (cf. Audiência, 14.11.2012).
Bento XVI, em um de seus últimos encontros, precisamente, no dia 14 de fevereiro de
2013, falando ao Clero de Roma, fez uma explanação emocionante sobre sua própria
experiência vivida antes e durante o Concílio Vaticano II. Fazendo memória, trouxe presente, de maneira muito viva, como os temas tratados no Concílio foram vindo à tona e qual era a reação
dos Padres conciliares. Mas, no final do discurso, como que desvendando um enigma, disse:
Agora quero acrescentar ainda um terceiro ponto: havia o Concílio dos Padres – o verdadeiro
Concílio – mas havia também o Concílio dos meios de comunicação, que era quase um
Concílio a parte. E o mundo captou o Concílio através deles, através dos mass-media.
Portanto o Concílio, que chegou de forma imediata e eficiente ao povo, foi o dos meios de
comunicação, não o dos Padres. E enquanto o Concílio dos Padres se realizava no âmbito da
fé, era um Concílio da fé que faz apelo ao intellectus, que procura compreender-se e procura
entender os sinais de Deus naquele momento, que procura responder ao desafio de Deus
naquele momento e encontrar, na Palavra de Deus, a palavra para o presente e o futuro,
enquanto todo o Concílio – como disse – se movia no âmbito da fé, como fides quaerens
intellectum, o Concílio dos jornalistas, naturalmente, não se realizou no âmbito da fé, mas
dentro das categorias dos meios de comunicação atuais, isto é, fora da fé, com uma
hermenêutica diferente. Era uma hermenêuticos política: para os mass-media, o Concílio era
uma luta política, uma luta de poder entre diversas correntes da Igreja (Colóquio, 14.02.2013)
Falando todo tempo espontaneamente, como numa conversa informal, sem nenhum
tipo de anotação em mãos, Bento XVI, mostrou a devastação que o Concílio virtual produziu
dificultando a concretização do verdadeiro Concílio. Usando termos como “calamidade”,
“problema”, “miséria”, elencou situações equivocadas, entre ela as os “seminários fechados, os
conventos fechados, a liturgia banalizada” e mais ainda, interpretação equivocada, fora da
própria chave do Concílio - que é a chave da fé - dos principais temas da renovação conciliar.
Referindo-se à Igreja Povo de Deus, houve uma corrente que a entendeu como uma luta de
poderes:
Havia aqueles que pretendiam a descentralização da Igreja, o poder para os Bispos e depois,
valendo-se da expressão «Povo de Deus», o poder do povo, dos leigos. Existia esta tripla
questão: o poder do Papa, em seguida transferido para o poder dos bispos e para o poder de
todos, a soberania popular. Para eles, naturalmente, esta era a parte que devia ser aprovada,
promulgada, apoiada (Colóquio, 14.02.2013).
Ainda hoje se coloca grande ênfase na crítica à estrutura eclesial e se gasta muito tempo
na tentativa de sua renovação, bem como nos planejamentos e projetos. Convém lembrar que
“as boas estruturas ajudam, mas por si só não bastam” (SS, 25). Elas “só funcionam se numa
comunidade subsistem convicções que sejam capazes de motivar os homens para uma livre adesão ao ordenamento comunitário (SS, 26). Tal convicção não existe por si mesma, não é
resultado de uma “decisão ética ou uma grande ideia”, mas da conversão que se dá no “encontro com um acontecimento, com uma Pessoa – Jesus Cristo - que dá à vida um novo
horizonte e dessa forma o rumo decisivo (DCE, 1).
Na Liturgia, houve uma tendência de despi-la de sua dimensão de fé relegando-a apenas
para a dimensão humana:
Não interessava a liturgia como ato da fé, mas como algo onde se fazem coisas
compreensíveis, algo de atividade da comunidade, algo profano. E sabemos que havia uma
tendência – invocava mesmo um fundamento na história – para se dizer: A sacralidade é uma
coisa pagã, eventualmente do próprio Antigo Testamento. No Novo, conta apenas que Cristo
morreu fora: fora das portas, isto é, no mundo profano. Portanto há que acabar com a
sacralidade, o próprio culto deve ser profano: o culto não é culto, mas um ato do todo, da
participação comum, e deste modo a participação vista como atividade (Colóquio,
14.02.2013).
Entende-se o porquê da firmeza com que o ainda Cardeal Ratzinger, como Prefeito da
Sagrada Congregação para a doutrina da fé, procurou salvaguardar o depositum fidei, mesmo
sabendo não ser compreendido e até criticado. Em uma intervenção sobre a Nova
Evangelização, no encontro de catequistas e professores de ensino religioso em Roma,
acenando, entre outros, o tema da liturgia, disse A especificidade da liturgia consiste no fato que o seu sujeito primário não somos nós, mas o
próprio Deus; a liturgia é actio divina, Deus age e nós respondemos à ação divina. A liturgia
não é invenção do sacerdote celebrante ou de um grupo de especialistas; a liturgia (o "rito")
cresceu num processo orgânico ao longo dos séculos, leva em si o fruto da experiência de fé
de todas as gerações. Mesmo se os participantes talvez não entendam todas as palavras,
compreendem o significado profundo, a presença do mistério, que transcende todas as
palavras. O celebrante não é o centro da ação litúrgica; o celebrante não está em frente do
povo em seu nome, não fala se si nem para si, mas "in persona Christi". Não contam as
capacidades pessoais do celebrante, mas unicamente a sua fé, na qual se Cristo se torna
transparente. "Ele deve crescer e eu diminuir" (Jo 3, 30) (Roma, ano 2000).
No que se refere à questão da Escritura, também, segundo o “Concílio dos Meios de
Comunicação Social”, se pretendia concebê-la apenas como “um livro, um livro histórico, que
deve ser tratado historicamente e nada mais, etc” (Colóqui, 14.02.2013).
A Exortação Verbum Domini mostrando os prejuízos que os reducionismos
hermenêuticos provocam, passando de um extremo ao outro, ou seja, exclusivizando o
histórico, ou o espiritual, golpeando tenazmente a vida espiritual, a ação pastoral, as homilias e
a formação teológica, afirma com penetração:
A assunção de tal hermenêutica no âmbito dos estudos teológicos introduz, inevitavelmente,
um gravoso dualismo entre a exegese, que se situa unicamente no primeiro nível, e a teologia
que leva a uma espiritualização do sentido das Escrituras não respeitadora do carácter
histórico da revelação. Tudo isto não pode deixar de resultar negativo também para a vida
espiritual e a atividade pastoral; «a consequência da ausência do segundo nível metodológico
é que se criou um fosso profundo entre exegese científica e lectio divina. E precisamente
daqui nasce às vezes uma forma de perplexidade na própria preparação das homilias». Além
disso, há que assinalar que tal dualismo produz às vezes incerteza e pouca solidez no caminho
de formação intelectual mesmo de alguns candidatos aos ministérios eclesiais. Enfim, «onde a
exegese não é teologia, a Escritura não pode ser a alma da teologia e, vice-versa, onde a
teologia não é essencialmente interpretação da Escritura na Igreja, esta teologia já não tem
fundamento»(VD, 35).
E aponta para a necessidade de “voltar decididamente a considerar com mais atenção
as indicações dadas pela Constituição dogmática Dei Verbum a este propósito” (VD, 35).
Ao concluir sua fala a milhares de sacerdotes e seminaristas, Bento XVI fez notar duas
grandes evidências de alegria e esperança, presentes na Igreja. A primeira é que “a força do
Concílio real, estava presente” sempre. A segunda, é que o verdadeiro Concílio, “pouco a
pouco, vai-se realizando cada vez mais e torna-se a verdadeira força que constitui também a
verdadeira reforma, a verdadeira renovação da Igreja”. Enquanto “o Concílio virtual se desfaz em pedaços e desaparece, se afirma o verdadeiro Concílio com toda a sua força espiritual”
(Colóquio, 14.02.2013).
Neste contexto de esperança, a proposta da Nova Evangelização e mais concretamente
ainda, do Ano da Fé, convoca a Vida Religiosa para uma renovada conversão à escuta do que o
Espírito “diz à Igreja” (cf. Ap 2,29). Com sua renuncia para, retirado dedicar-se mais à oração,
Bento XVI indica o caminho à Fonte da Luz, à Água viva, com a qual precisamos sempre nos
conectar.
O motor da nova evangelização é reavivar em toda a Igreja o desejo ardente de anunciar
novamente Cristo ao homem contemporâneo. E para que não se fique só na teoria e não haja
equívocos, Bento XVI pede que nos apoiemos sobre os documentos do Concílio Vaticano II, nos
quais este impulso encontrou a sua expressão.
Olhando a realidade da vida eclesial e mais precisamente da Vida religiosa,
inevitavelmente surge a pergunta: Será que, de fato, conhecemos o verdadeiro Concílio
Vaticano II? E, depois de ter tomado conhecimento do discurso de Bento XVI ao clero de Roma
acima citado, surge uma segunda pergunta: Será que não continuamos agindo com a
concepção do tal “concílio virtual”, isto é, fora do espírito de fé, com a visão de uma luta de
poder entre diversas correntes da Igreja?
João XXIII fez um gesto grandioso e não repetível, confiando a um Concílio universal a missão
de compreender de modo novo a Palavra da fé. Acima de tudo, o Concílio retomou e assumiu
a grande tarefa de definir de maneira nova tanto a missão quanto a a relação da fé com este
tempo, com seus valores. Contudo, transformar em vida o que foi dito, permanecendo aí na
profunda continuidade da fé, é um processo muito mais difícil do que o próprio Concílio;
sobretudo levando em consideração o fato de que o Concílio foi recebido pelo mundo através
da interpretação dos meios de comunicação, e não mediante seus textos, que quase ninguém
lê (Luz do Mundo, pg. 88).
Voltar “à letra” do Concílio, isto é, aos textos do Concílio para encontrar o seu
verdadeiro espírito, é o que Bento XVI propõe com urgência para uma evangelização
verdadeiramente nova e genuína, haja visto que “a referência aos documentos protege dos
extremos tanto de nostalgias anacrônicas como de avanços excessivos, permitindo captar a
novidade na continuidade” (Audiência Geral, 14.11.2012).
PEDAGOGIAS DA NOVA EVANGELIZAÇÃO
Qual é a paróquia ou comunidade em que os agentes de evangelização não se deparam
com o abandono da Igreja por parte dos fiéis? Exemplo típico disso são os adolescentes e
jovens crismandos. Mas não só. Até pessoas engajadas distanciam-se da Igreja. Muitas deixam
por completo de participar não só das atividades, mas da própria vida sacramental. O mesmo
acontece com muitos jovens – moços e moças – que entram fervorosamente para as
Congregações religiosas e, depois de um tempo, abandonam tudo, até a frequência normal à
vida da Igreja na comunidade onde vivem. Isto sem falar dos religiosos com votos temporários
ou perpétuos que retornam à vida leiga como se nada tivesse acontecido. É, talvez, porque, de
fato, não aconteceu o que deveria ter acontecido: o encontro com a Pessoa de Jesus Cristo.
A questão principal não reside, porém, em realidade, como as acima descritas, e sim no
fato de que, não só nos planos e programações pastorais, mas, sobretudo na mentalidade pastoral da Igreja atual e dos agentes de pastoral, não existe, nem mesmo a consciência da
necessidade de um plano de pastoral para acompanhar estas pessoas em seu caminho de fé
para além das estruturas paroquiais. Prevalece a mentalidade de que são nossas atividades e
ações que vão converter as pessoas. Esquece-se, não raramente, que o sujeito principal da
evangelização do mundo é Deus através de Jesus Cristo, pela ação do Espírito Santo e que a
Igreja é instrumento à serviço da Evangelização (cf. Homilia, 11.10.2012).
Os planos e atividades pastorais são pensados, em geral, para quem está dentro das
estruturas paroquiais e no máximo para trazer de volta quem abandonou tal ambiente ou ainda
nunca se achegou a ele. Não se tem, sequer a consciência da necessidade de uma pastoral para
além das estruturas, que acompanhe aqueles cujo caminho pessoal de fé passa pelos desertos,
longe da realidade das paróquias. Por outro lado, não se tem consciência também que nem
todos que estão diretamente ligados às estruturas paroquiais, estejam ali porque já fizeram o
encontro com a Pessoa de Jesus Cristo, ou seja, a experiência de conversão. Número
significativo dos que estão ligados à estrutura paroquial, têm motivações diversas, não, porém,
aquela que o fez cristão, isto é, o encontro com Jesus Cristo. Tais pessoas necessitam de
acompanhamento especial na fé. E mesmo os que já passaram por um profundo processo de
conversão, de encontro com a Pessoa de Jesus Cristo, precisam alimentar sua fé com contínuas
experiências de Deus, o que exige tempos de qualidade, como também aprofundamento
contínuo dos conhecimentos do núcleo central da própria fé católica, do credo, da Sagrada
Escritura. De fato:
o conhecimento de Deus é experiência de fé e implica, ao mesmo tempo, um caminho
intelectual e moral: tocados profundamente pela presença do Espírito de Jesus em nós,
ultrapassamos os horizontes dos nossos egoísmos e abrimo-nos aos verdadeiros valores da
existência (Audiência Geral, 21.11.2012).
O documento de Aparecida chama atenção das paróquias que reduzem sua missão à
“pastoral de mera conservação” (cf. nº 370), o que significa a execução de uma programação de
atividades desconectada da verdadeira fonte de Água Viva, que se renova a cada dia, que é o
Mistério de Cristo.
1. A fé e a evangelização são um caminho
Logo no início da Carta Apostólica Porta Fidei, Bento XVI diz que desde o inicio de seu
pontificado procurou lembrar a necessidade de redescobrir o caminho da fé e que a Igreja no
seu conjunto – e os pastores nela - devem pôr-se à caminho para conduzir os homens do deserto para lugares de vida, ao encontro de Jesus Cristo (cf. PF, 2). Três elementos destas
poucas linhas chamam atenção. Primeiro, que a fé é um caminho. Segundo, que a Igreja, cuja
razão de ser é a evangelização, tem que pôr-se à caminho para conduzir os homens do deserto
para lugares de vida, de amizade com o Filho de Deus. Terceiro, que o caminho é do deserto
para os lugares de vida.
Dizer que fé e evangelização são um caminho, significa falar de duas realidades. Uma é o
fato de que cada pessoa precisa percorrer seu próprio e desconhecido caminho interior para
chegar à fé, ao encontro com Jesus Cristo. Outra, é que a Igreja – e nela os agentes da
evangelização - devem pôr-se à caminho, acompanhando cada pessoa no seu caminho pessoal,
até que chegue ao momento da graça: o encontro com a pessoa de Jesus Cristo.
O caminho de cada pessoa é único, é diversificado e entremeado de vais-e-vens. Uma
pessoa pode começar seu caminho de fé fora das estruturas da Igreja e ser conduzido para
dentro dela, como também pode começar dentro e levar para fora da Igreja. O homem sedento
de Deus perambula por caminhos diversos, testando o que pode saciá-lo. Descobre o que não o
satisfaz, mas nem sempre consegue definir o que o faria experimentar aquela felicidade de que
seu coração sente saudade (cf. SS 22). E até quando não a encontra, a Igreja, como pedagoga
da fé, tem por missão acompanha-lo neste peregrinar, muitas vezes pelo deserto e por
caminhos sinuosos ou tortuosos. Neste sentido, Bento XVI exorta:
Nesta peregrinação, sintamo-nos irmãos de todos os homens, companheiros de viagem
também de quantos não creem, de quem está à procura, de quem se deixa interrogar com
sinceridade pelo dinamismo do próprio desejo de verdade e de bem. Rezemos, para que Deus
mostre o seu rosto a quantos o procuram com coração sincero (Audiência, 07.11.2012)
A título de ilustração trago presente alguns traços do caminho de fé de Charles de
Foucauld (1858-1916). Na infância recebeu formação cristã fez uma sentida Primeira
Comunhão. Mas na adolescência distanciou-se da fé. Chegou a ser conhecido como amante do
prazer e da vida fácil. Na juventude, numa viagem ao Marrocos (1883-1884), o testemunho da
fé dos muçulmanos levantou-lhe um questionamento interior: “Mas Deus, existe?” "Meu Deus,
se existis, fazei que vos conheça". No retorno, o acolhimento carinhoso de sua família
profundamente cristã, somou estímulos para que iniciasse um processo de estudo e direção espiritual com um sacerdote, chegando ao encontro com Deus em outubro de 1886. Tinha 28
anos. Disse ele: "Quando acreditei que existia um Deus, compreendi que não podia fazer outra
coisa senão viver somente para Ele". Identificou-se profundamente com o Mestre Jesus,
assumindo seu estilo de vida. Hoje a "família espiritual de Carlos de Foucauld" inclui diversas
associações de fiéis, comunidades religiosas e institutos seculares de leigos ou sacerdotes
dispersos no mundo inteiro (cf. Serviço de Liturgia dos Santos. www.vatican.va)
Somente pessoas que percorreram o caminho de fé e chegaram ao encontro com Jesus
Cristo estariam capacitadas para serem agentes de evangelização.
O Núcleo central da evangelização, que foi o ponto de partida, e que perpassa, como um
fio de ouro, todos os documentos e discursos de Bento XVI e, por sua vez, tornou-se a
característica principal do Documento da Conferência de Aparecida e a grande novidade em
relação às Conferências Latino-Americanas anteriores, a saber Medelín, Puebla e Santo
Domingo, é o encontro com a Pessoa de Jesus Cristo, pois, “ao início do ser cristão, não há uma
decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa
que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE, 01).
No entanto, sendo a fé dom e iniciativa de Deus e resposta profundamente livre e
humana por parte do homem (cf. Audiência, 24.10,2012) que se dá pela graça de Deus e os
auxílios interiores do Espírito Santo (CaIC, 154), ninguém pode prever ou programar o dia, a
hora, a situação, o lugar em que se dá o encontro com a Pessoa de Jesus Cristo. Ele pode
acontecer dentro ou fora das estruturas da Igreja; num retiro ou numa situação onde não há
nada correlacionado com a igreja e até num contexto em que se ignora a presença de Deus,
pois, “sem dúvida, o mistério de Deus permanece sempre além dos nossos conceitos e da nossa
razão, dos nossos ritos e das nossas preces (...). E é o próprio Deus quem se auto comunica, se
descreve, se torna acessível. E nós tornamo-nos capazes de ouvir a sua Palavra e de receber a
sua verdade” (Audiência, 17.11.2012).
A capacitação para ouvir e acolher Deus é resultado da ação do próprio Deus que, “na
sua vontade de se manifestar, de entrar em contato conosco, de se fazer presente na nossa
história, torna-nos capazes de o ouvir e acolher” (Audiência, 17.11.2012). Mas é também
resultado de uma experiência de vais-e-vens do ser humano, que tateia por diversas
experiências em busca de saciar sua sede de infinito. Na verdade o homem experimenta o desejo de infinito e experimenta também o que não o satisfaz, mas nem sempre consegue
definir o que o faria experimentar aquela felicidade de que seu coração tem nostalgia (cf. Sl
63,1).
De certo modo, desejamos a própria vida, a vida verdadeira, que depois não seja tocada
sequer pela morte; mas, ao mesmo tempo, não conhecemos aquilo para que nos sentimos
impelidos. Não podemos deixar de tender para isto e, no entanto, sabemos que tudo quanto
podemos experimentar ou realizar não é aquilo por que anelamos. Esta « coisa »
desconhecida é a verdadeira « esperança » que nos impele e o facto de nos ser desconhecida
é, ao mesmo tempo, a causa de todas as ansiedades como também de todos os ímpetos
positivos ou destruidores para o mundo autêntico e o homem verdadeiro. A palavra « vida
eterna » procura dar um nome a esta desconhecida realidade conhecida (SS 12).
Sendo o desejo humano, prevalentemente, atraído por bens concretos, diante da
grande oferta de bens que a sociedade moderna desenvolveu pelos avanços da ciência e da
técnica, da conquista da autonomia pessoal, tornou-se comum o homem desejar tudo, menos o
lado espiritual. Tendo entrado na espiral do secularismo, as sociedades sentem um vazio,
sentem insatisfação, falta a verdadeira alegria e um sentido verdadeiro para a vida. Por mais
que os homens se deleitem em toda espécie de prazer e poder, que desfrutem do bem estar do
nível econômico mais alto possível, que tenham à sua disposição todas as condições para uma
vida digna: saúde, educação, alimentação, moradia, condições de trabalho, etc, continuam,
muitas vezes sem se aperceberem, a se perguntar: O que pode de fato satisfazer o desejo
humano, o que pode verdadeiramente conduzir à verdadeira alegria?
A Nova Evangelização, que é destinada principalmente aos contextos da cultura
secularizada, tem à sua frente um grande desafio a ser enfrentado, pois, para grande parte da
sociedade, Deus não é o esperado, o desejado. Deus é uma realidade que passa despercebida.
Os excessos do consumo anestesiaram o desejo de Deus. Criou-se um fosso, “o fosso do
encerramento dentro dos prazeres materiais; o fosso do esquecimento do outro, da
incapacidade de amar” (SS 44). O próprio Jesus advertiu sobre tão grande perigo: “Cuidado para
que vossos corações não fiquem pesados pela devassidão, pela embriaguez, pelas
preocupações da vida, e não se abata repentinamente sobre vós aquele Dia” (Lc 21,34).
É incrível como a cultura do consumismo, com muita esperteza, explora e manipula a
dimensão dos desejos do ser humano, para estimulá-lo à acumulação de riqueza, a fim de consumir cada vez mais. Em muitas sociedades o consumo tornou-se, praticamente, o único
critério em torno do qual a vida se organiza e se desenvolve, o núcleo central e a norma de vida
do cotidiano.
No entanto, na evangelização, nem sempre se desfruta dos dinamismos que estão
naturalmente presentes no coração da pessoa. Não somos conscientes da pedagogia inscrita no
ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, criado por e para Deus. Jesus mesmo
mostrou que “os filhos das trevas são mais espertos do que os filhos da luz” (Lc 16, 8b).
2. Pedagogia do desejo
Bento XVI, em uma das primeiras catequeses do Ano da Fé9
, sublinhou a questão do
desejo de Deus inscrito no coração de cada ser humano e sugeriu depreender dele uma
pedagogia para a evangelização: a pedagogia do desejo.
O homem é um ser de desejos, vive em contínua busca para saciá-los e nunca se
contenta com o quanto foi alcançado. O desejo constitui um dinamismo interno que move o
homem a sair de si em direção a determinado bem. Como apaixonado por Santo Agostinho que
é, Bento XVI afirma: “Com agudo conhecimento da realidade humana, Santo Agostinho pôs em
evidência como o homem se move espontaneamente, e não constrangido, quando encontra
algo que o atrai e nele suscita desejo” (SCa, 2).
Nem sempre, porém, o homem se dá por conta o que é este desejo que atravessa seu
coração, permanece aninhado nele e nunca se sacia por completo. “De fato, todo o homem traz
dentro de si o desejo incomprimível da verdade última e definitiva” (SaC 2). E “cada desejo que
se apresenta ao coração humano faz-se eco de um desejo fundamental que nunca é
plenamente satisfeito” (Audiência Geral, 07.11.2012).
Sobre este desejo fundamental é que, de modo impressionante, inicia-se o Catecismo da
Igreja Católica, tão recomendado por Bento XVI para conhecer o núcleo central da fé:
O desejo de Deus está inscrito no coração do homem, já que o homem é criado por Deus e
para Deus; e Deus não cessa de atrair o homem a si, e somente em Deus o homem há de
encontrar a verdade e a felicidade que não cessa de procurar (n. 27).
Desejar Deus é dimensão não só constitutiva, mas central do ser humano. A inscrição de
Deus está no coração, isto é, no centro do ser humano, na sua essência, na sua intimidade.
Entre o ser humano e Deus há um imã, uma atração, que acompanha o homem para sempre,
eternamente. Até mesmo quando, em sua liberdade, cria um abismo intransponível entre ele e
Deus, (cf. Lc 16,19-31), experimenta a terrível realidade de seu anelo “que se transforma numa
sede ardente e já irremediável” (SS, 44). Pois Deus não cessa de atraí-Lo e o homem não cessa
de desejá-Lo. A grande verdade é que:
Quem não conhece Deus, mesmo podendo ter muitas esperanças, no fundo está sem
esperança, sem a grande esperança que sustenta toda a vida (cf. Ef 2,12). A verdadeira e
grande esperança do homem, que resiste apesar de todas as desilusões, só pode ser Deus – o
Deus que nos amou, e ama ainda agora « até ao fim », « até à plena consumação » (cf. Jo 13,1
e 19,30) (SS, 27).
A fim de despertar o ser humano do sono da insensibilidade em relação ao desejo de
Deus e abrir um caminho para uma experiência de encontro com Cristo, o Papa Bento XVI
propõe a promoção de uma pedagogia que empregue o dinamismo do desejo, utilizando-o
tanto na evangelização da missão ad gentes, como para os que já receberam o anúncio do
evangelho:
Por conseguinte devemos considerar que seja possível também na nossa época,
aparentemente tão insensível à dimensão transcendente, abrir um caminho rumo ao
autêntico sentido religioso da vida, que mostra como o dom da fé não é absurdo, não é
irracional. Seria de grande utilidade, para este fim, promover uma espécie de pedagogia do
desejo, quer para o caminho de quem ainda não crê, quer para quem já recebeu o dom da fé
(Audiência Geral, 07.11.2012).
Segundo Bento XVI, a pedagogia do desejo consiste em aprender ou voltar a aprender, o
gosto pelas alegrias autênticas da vida, ou seja, as que são duradouras e permanecem. Para isto
faz-se necessário empreender a tarefa de prestar atenção aos desejos, às satisfações e aos
efeitos que as satisfações produzem:
Nem todas as satisfações produzem em nós o mesmo efeito: algumas deixam uma marca
positiva, são capazes de pacificar o ânimo, tornam-nos mais ativos e generosos. Outras, ao
contrário, depois da luz inicial, parecem desiludir as expectativas que tinham suscitado e por
vezes deixam atrás de si amargura, insatisfação ou um sentido de vazio (Audiência Geral,
07.11.2012).
Tal tarefa faz parte do itinerário de amadurecimento da fé, pois “o caminho para tal
meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessários
purificações e amadurecimentos que passam também pela estrada da renúncia” (DCE 5).
Todos temos necessidade de percorrer um caminho de purificação e de cura do desejo.
Somos peregrinos rumo à pátria celeste, rumo àquele bem pleno, eterno, que nada jamais
nos poderá extirpar (Audiência Geral, 07.11.2012).
O desejo de Deus precisa ser correspondido, alimentado, protegido para não ser
sufocado pelos desejos naturais e humanos, os quais não são maus, mas também não são fins
em si. São, antes, dons de Deus colocados como meios para chegar ao desejo fundamental.
Para não se deixar seduzir pelo que é aparentemente atraente, mas depois revela-se
insípido, por aquilo que é fonte de inebriamento, mas depois tolhe a liberdade, e para fazer
sobressair o desejo de Deus, Bento XVI afirma que é preciso “exercer o gosto interior pelas
verdadeiras alegrias e produzir anticorpos eficazes contra a banalização e o nivelamento hoje
difundidos” (Audiência Geral, 07.11.2012). Isto acontece num processo de educação que se dá “desde a tenra idade em todos os âmbitos da existência — a família, a amizade, a
solidariedade com quem sofre, a renúncia ao próprio eu para servir o próximo, o amor ao
conhecimento, à arte, às belezas da natureza (...) mas, também os adultos precisam
redescobrir estas alegrias, desejar realidades autênticas, purificando-se da mediocridade na
qual podem encontrar-se envolvidos (Audiência Geral, 07.11.2012).
Na Encíclica Deus caritas est, Bento XVI mostra como este caminho pedagógico
acontece na experiência do amor humano através do dinamismo do eros direcionado ao
verdadeiro amor, o ágape. Isso “não é rejeição do eros, não é o seu « envenenamento », mas a
cura em ordem à sua verdadeira grandeza” (5).Na dimensão humana “quando alguém
experimenta na sua vida um grande amor, conhece um momento de « redenção » que dá um
sentido novo à sua vida” (SS 26). Porém, progressivamente, a pessoa vai tomando consciência
deste mistério que nem sequer a pessoa amada, na verdade, é capaz de satisfazer plenamente o desejo que habita seu coração. Interroga-se sobre a origem deste amor e chega à conclusão
que há um amor eterno que dá sentido também ao amor humano:
Mas, rapidamente se dará conta também de que o amor que lhe foi dado não resolve, por si
só, o problema da sua vida. É um amor que permanece frágil. Pode ser destruído pela morte.
O ser humano necessita do amor incondicionado. Precisa daquela certeza que o faz exclamar:
« Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro,
nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá
separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor » (Rom 8,38-39) (SS
26).
E quanto mais autêntico é o amor pelo outro, mais interrogações aparecem sobre a
origem e duração deste amor conduzindo ao seu verdadeiro e último fim que é a descoberta do
amor eterno de Deus:
Sim, o amor é « êxtase »; êxtase, não no sentido de um instante de inebriamento, mas como
caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom
de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a
descoberta de Deus (DCE 6).
A pedagogia do desejo conduz a pessoa nas diversas etapas da vida para chegar a
percepção que só algo infinito lhe pode bastar. Este caminho pedagógico se desenvolve entre
duas variantes: a idade cronológica e a purificação dos desejos.
Referente à idade cronológica, “o homem, na sucessão dos dias, tem muitas esperanças
– menores ou maiores – distintas nos diversos períodos da sua vida” (SS 30).
Na juventude, as utopias despontam com muita força numa variedade de desejos
“menores”, que se misturam, ofuscando o desejo “maior” e, “às vezes pode parecer que uma
destas esperanças o satisfaça totalmente, sem ter necessidade de outras” (SS, 30). Na
juventude, pode ser a esperança do grande e fagueiro amor; a esperança de certa posição na
profissão, deste ou daquele sucesso determinante para o resto da vida. (SS 30). Mas também,
com igual força se manifesta “o desejo insuprimível da verdade última e definitiva” (SCa 2) a
qual só Deus pode satisfazer:
Na idade da juventude, surgem de modo irreprimível e sincero as questões sobre o sentido da
própria vida e sobre a direção que se deve dar à própria existência. A estas questões só Deus
sabe dar verdadeira resposta (VD,104).
Na segunda variante, a purificação dos desejos acontece provando os objetos de
satisfação dos desejos menores e, “quando estas esperanças se realizam, resulta com clareza
que na realidade, isso não era a totalidade” (SS 30) e, por experiência própria e não apenas por
ouvir falar “torna-se evidente que o homem necessita de uma esperança que vá mais além. Vê-
se que só algo de infinito lhe pode bastar, algo que será sempre mais do que aquilo que ele
alguma vez possa alcançar” (SS, 30).
Para Bento XVI “o sonho originário do homem” é a “experiência mística” e, por sua vez,
a experiência mística é a “essência da fé bíblica”. Afirma que o livro do Cântico dos Cânticos, o
qual desde cedo, tanto na literatura cristã como na judaica, descreviam a “relação de Deus com
o homem e do homem com Deus”, permite conhecer as etapas de como se exprime a
“unificação do homem com Deus”.
Concretamente, como se deve configurar este caminho de ascese e purificação? Como deve
ser vivido o amor, para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina? Uma
primeira indicação importante podemos encontrá-la no Cântico dos Cânticos, um dos livros do
Antigo Testamento bem conhecido dos místicos (DCE, 6).
Antes, porém, o Papa lembra que Deus e o homem não se confundem no anonimato,
mas entram numa comunhão que “é unidade que cria amor, na qual ambos, Deus e o homem,
permanecem eles mesmos, mas tornando-se plenamente uma coisa só” (DCE 10).
Em síntese, as etapas da pedagogia que introduzem o ser humano na sua relação mística
com Deus, depreendidas por Bento XVI do Cântico dos Cânticos, são: Primeira, a procura
indeterminada de um amor ainda inseguro. Nela predomina busca de si ppróprio, o desejo de
imersão no inebriamento da própria felicidade.
Na segunda etapa o amor torna-se descoberta do outro. O centro torna-se, não mais a
busca da própria felicidade, mas “cuidado do outro e pelo outro”, busca do bem amado,
renúncia de si mesmo, disposição ao sacrifício e até procura do sacrifício como expressão do
amor.
Na terceira etapa vem a procura do definitivo, do eterno, do “para sempre” e da
exclusividade – “apenas esta única pessoa”. É a busca e o encontro de Deus que se dá numa
saída permanente do eu fechado em si mesmo, para a união com Ele (DCE, 6):
Quando no desejo se abre a janela em direção a Deus, isto já é sinal da presença da fé no
ânimo, fé que é uma graça de Deus sobre a qual Santo Agostinho afirmava: «Com a
expectativa, Deus alarga o nosso desejo, com o desejo alarga o ânimo e dilatando-o torna-o
mais capaz» (Comentário à Primeira carta de João, 4, 6; PL 35, 2009) (Audiência Geral,
07.11.2012).
2.1. Passagem obrigatória
O itinerário da pedagogia do desejo não pode ser “terceirizado” e nem ser a repetição
do caminho de outra pessoa. É um caminho interior e, por ser única e irrepetível, cada pessoa
precisa percorrer o seu “porque a situação das realidades humanas depende, em cada geração
novamente, da livre decisão dos homens que dela fazem parte” (SS, 30). Cada pessoa é amada
pessoalmente e de maneira única por Deus e tem direito de conhecer Deus e seu amor. Porém,
por causa da liberdade pessoal, pode ser proposto, mas não imposto, pois “um mundo sem
liberdade não é de forma alguma um mundo bom” (SS, 30). E, embora faça parte da grande
consumação, onde “Deus será tudo em todos” (cf.1 Cor 15,20-28), este itinerário é irrealizável
em sociedade.
Bento XVI lembra como a Época moderna, com os progressos científicos e tecnológicos,
desenvolveu a esperança de substituir o Reino de Deus pelo reino do homem com uma política
cientificamente fundada. Apesar da sua grande mobilização e valor
(...) com o passar do tempo ficou claro que esta esperança escapa sempre para mais longe.
Primeiro deram-se conta de que esta era talvez uma esperança para os homens de amanhã,
mas não uma esperança para mim. E, embora o elemento « para todos » faça parte da grande
esperança – com efeito, não posso ser feliz contra e sem os demais – o certo é que uma
esperança que não me diga respeito a mim pessoalmente não é sequer uma verdadeira
esperança (SS 30).
Não se pode ignorar que, na pedagogia do desejo, existe uma passagem obrigatória para
se chegar ao encontro com Deus. Trata-se de uma experiência de frustração, de incapacidade
de se dar a si mesmo uma resposta. Então:
Até mesmo a experiência do pecado contém uma pedagogia educativa da vida
espiritual. Ela possibilita o conhecimento não só da condição humana, mas da grande
misericórdia divina e leva a descobrir o único endereço da autêntica alegria, aquela que
verdadeiramente satisfaz o desejo fundamental do homem: Deus.
O dinamismo do desejo está sempre aberto à redenção. Também quando ele se adentra por
caminhos desviados, quando persegue paraísos artificiais e parece perder a capacidade de
ansiar pelo bem verdadeiro. Também no abismo do pecado não se apaga no homem aquela
centelha que lhe permite reconhecer o verdadeiro bem, saboreá-lo, e assim iniciar um
percurso de subida, no qual Deus, com o dom da sua graça, nunca deixa faltar a sua ajuda
(Audiência Geral, 07.11.2012).
Grandes santos passaram pela experiência de serem grandes pecadores. E como não
lembrar aqui o tão caro a Bento XVI, Santo Agostinho. Não por nada é autor da expressão que
entrou para o cântico da mais solene liturgia da Igreja, o Exultet: “Ó feliz culpa que mereceu tal
e tão grande Redentor” (citado em CaIC nº 412).
Antes da sua conversão, Santo Agostinho procura a verdade com grande inquietação, através
de todas as filosofias disponíveis, julgando-as todas insatisfatórias. A cansativa busca racional
é para ele uma pedagogia significativa para o encontro com a Verdade de Cristo (Audiência
Geral, 21.12.2012).
O Catecismo da Igreja Católica, cita o comentário de São Tomás de Aquino, sobre o
Exultet, no qual afirma que Deus dá a liberdade para o homem experimentar os males como
meio para chegar a um bem maior:
Nada se opõe a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim mais alto depois do
pecado. Efetivamente, Deus permite que os males aconteçam para deles tirar um bem maior.
Daí a palavra de São Paulo: "onde abundou o pecado, superabundou a graça. (Rm 5, 20). Por
isso, na bênção do círio pascal canta-se: "Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande
Redentor!" (Summa theologiae. 3, q. 1, a. 3, ad 3: Ed. Leon. 11, 14, citação: CaIC 412).
3. Meios de aprendizagem e purificação do desejo fundamental
Conforme descrição acima, a experiência de “uma certa amostra do vértice da
existência, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser” (DCE,4), não se dá por si
mesma. É graça de Deus e abertura do homem o qual necessita de disciplina e de purificação para ampliar o coração. Vimos também que esta purificação dos desejos acontece num
caminho com etapas subsidiadas pelos movimentos da idade cronológica e das satisfações
experimentadas sempre que procurou saciar seus anseios menores.
Nos ensinamentos de Bento XVI, depreendem-se também os meios de aprendizagem e
purificação dos desejos a fim de eleger o desejo fundamental, o desejo de Deus. Os principais
meios são a oração, o trabalho, o sofrimento e o juízo (cf. SS, 32-48).
3.1. A oração
A oração é “o primeiro e essencial lugar de aprendizagem da esperança” (SS, 32). A oração
amplia o coração do homem que por natureza é estreito para acolher o grande dom de Deus. A
longanimidade de Deus aumenta o desejo do homem dando condições e tempo para a
dilatação do coração. Referindo-se a uma homilia de Santo Agostinho sobre a Primeira Carta de
São João, Bento XVI afirma:
A oração é como um exercício do desejo. O homem foi criado para uma realidade grande, ou
seja, para o próprio Deus, para ser preenchido por Ele. Mas, o seu coração é demasiado
estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser dilatado. Assim procede
Deus: diferindo a sua promessa, faz aumentar o desejo; e com o desejo, dilata a alma,
tornando-a mais apta a receber os seus dons ». Aqui Agostinho pensa em S. Paulo que, de si
mesmo, afirma viver inclinado para as coisas que hão de vir (Fil 3,13) (SS, 33).
E, ainda mais, o Papa traz a imagem que Santo Agostinho usou para descrever este processo de dilatação do coração para Deus:
Supõe que Deus queira encher-te de mel (símbolo da ternura de Deus e da sua bondade). Se
tu, porém, estás cheio de vinagre, onde vais pôr o mel? O vaso, ou seja o coração, deve
primeiro ser dilatado e depois limpo: livre do vinagre e do seu sabor. Isto requer trabalho, faz
sofrer, mas só assim se realiza o ajustamento àquilo para que somos destinados (SS, 33).
A abertura do coração para os irmãos só se dá em consequência da abertura para Deus:
Apesar de Agostinho falar diretamente só da receptividade para Deus, resulta claro, no
entanto, que o homem neste esforço, com que se livra do vinagre e do seu sabor amargo, não
se torna livre só para Deus, mas abre-se também para os outros. De fato, só tornando-nos
filhos de Deus é que podemos estar com o nosso Pai comum. Orar não significa sair da
história e retirar-se para o canto privado da própria felicidade. O modo correto de rezar é um
processo de purificação interior que nos torna aptos para Deus e, precisamente desta forma,
aptos também para os homens (SS, 33).
3.2. O trabalho
Toda ação séria e reta do ser humano, pequena ou grande, no fundo é concretização de
seu desejo mais profundo. Mas, em seu agir ele se depara com decepções, fracassos e percebe
que sua vida não pode basear-se somente naquilo que é alcançável pelo seu próprio agir e
pelas ações governamentais. Percebe que isto cansa ou leva-o ao fanatismo. Sua reação será
buscar algo que vá para além do que é limitado e finito e que conserva o sentido mesmo
quando aparentemente se fracassa, pois:
Só a grande esperança-certeza de que, não obstante todos os fracassos, a minha vida pessoal
e a história no seu conjunto estão conservadas no poder indestrutível do Amor e, graças a isso
e por isso, possuem sentido e importância, só uma tal esperança pode, naquele caso, dar
ainda a coragem de agir e de continuar (SS,31).
3.3. O sofrimento
O sofrimento faz parte da vida humana e, mesmo com tudo que se faz para diminuí-lo,
jamais se conseguirá eliminá-lo totalmente. O sofrimento é manifestação fragilidade humana e
da finitude da sua materialidade. Ele é como que uma escola que auxilia o homem a tomar
consciência do seu desejo de eternidade, quando é testado no seu limite, o desejo de Deus
ajuda-o a percebe que “não é o evitar o sofrimento, a fuga diante da dor, que cura o homem,
mas a capacidade de aceitar a tribulação e nela amadurecer, de encontrar o seu sentido através
da união com Cristo, que sofreu com infinito amor” (SS, 37).
3.4. O Juízo
A consciência da existência do Juízo, embora, ao longo da história, tenha sido
apresentado com dimensão negativa, influenciou os cristãos, “como critério segundo o qual
ordenar a vida presente, enquanto apelo à sua consciência e, ao mesmo tempo, enquanto
esperança na justiça de Deus” (SS, 41) e no encontro face a face com Ele. Vivendo nesta
perspectiva do encontro eminente com Deus, quantos santos tiveram uma vida frutuosa e
tornaram-se canais do Amor Eterno saciando o desejo de Deus de tantos homens e mulheres
ou indicando o caminho direto à Fonte. A consciência de um Deus que se importa com o ser humano, que não lhe é indiferente, confere a vida humana e a cada atitude do cotidiano um
dinamismo, pois nosso modo de viver não Lhe é irrelevante.
CONCLUSÃO
Em que consiste a “Nova Evangelização” nos ensinamentos de Bento XVI? Qual é seu
núcleo central, sua essência, seu conteúdo, assim como sua metodologia e seus apelos? Quais
são suas interpelações e exigências práticas para a pastoral e a atuação dos consagrados e
consagradas? Estes questionamentos foram a razão desta pesquisa que nessa conclusão
condensamos.
Se tivesse que dar um título à conclusão deste trabalho seria: “há uma só resposta para
todas as perguntas”. De fato, averiguando os documentos e pronunciamentos de Bento XVI, vê-
se claramente que o fio de ouro que perpassa seus ensinamentos e que responde as diversas
perguntas sobre a “Nova Evangelização”, é uma só: Caritas.
Caritas é a fonte, o princípio, o método, o conteúdo e a finalidade da “Nova
Evangelização”. Caritas é o estilo de vida de quem anuncia o Evangelho e projeto de vida para
quem o acolhe. Caritas é a interpelação vital da “Nova Evangelização” para a vida Consagrada.
Caritas é o fim último da “Nova Evangelização”. Caritas é Deus porque Deus Caritas est (cf. 1 Jo
4, 8.16). Em suma, a caridade é tudo:
A caridade é amor recebido A caridade é amor recebido e dado; é « graça » (cháris). A sua nascente é o amor fontal do Pai
pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo Filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo
qual existimos; amor redentor, pelo qual somos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo
(cf. Jo 13, 1), é « derramado em nossos corações pelo Espírito Santo » (Rm 5, 5). Destinatários
do amor de Deus, os homens são constituídos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se
eles mesmos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de
caridade (CV, 5).
Para Bento XVI, a “Nova Evangelização” é o reconhecimento de que todos têm
necessidade do Evangelho. Todos têm o direito de receber o Evangelho. O Evangelho destina-se
a todos e não apenas a um círculo determinado. Portanto, somos obrigados a procurar novos
caminhos para levar o Evangelho a todos. A “Nova Evangelização” é o serviço da caridade que deseja unicamente servir ao bem das pessoas e da humanidade, dando espaço Àquele que é a
Vida, o Deus Caritas.
O desejo do coração do Papa é que cada um se sinta amado por aquele Deus que doou
seu Filho por nós e que mostrou seu amor sem limites; que cada um sinta quanta alegria existe
em crer de modo cristão e desejar realidades autênticas; que cada pessoa tenha o significado, a
esperança, o fundamento seguro, um terreno sólido que ajude a viver com um sentido
autêntico as crises, as obscuridades, as dificuldades e os problemas quotidianos. É isto que fé
cristã propriamente oferece.
Possibilitar ao mundo e a cada pessoa o acesso a Deus e devolver a Deus o lugar que lhe
cabe na vida do mundo e de cada pessoa, é o que indicam todas as setas dos ensinamentos de
Bento XVI sobre a “Nova Evangelização”.
O Papa não poupa esforços para trazer à consciência moderna, a verdade de que, para o
homem, o “unum necessarium” é Deus; de que as contas sobre o homem, sem Deus, não
quadram, da mesma forma as contas sobre o mundo, sobre todo o universo, sem Ele, não
quadram; de que quando não há Deus, a existência adoece. Tudo muda se Deus está ou não
presente. “Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender
quem seja” (CV,78).
A caridade que não leva em consideração todas as pessoas, não é verdadeira. A
verdadeira caridade é aquela que quer alcançar todas e cada uma das pessoas, possibilitando o o
acesso à fonte da caridade que é Deus. Esta é a razão que levou Bento XVI a convocar toda a
Igreja para a “Nova Evangelização” e criar um Conselho para sua promoção. Mas, sobretudo,
pela “Nova Evangelização”, o Papa deseja que seja possibilitado o encontro com a Pessoa de
Jesus Cristo, especialmente para aquela parte da humanidade que não tem acesso à
evangelização "clássica" da Igreja.
O encontro pessoal e comunitário com a Pessoa de Jesus Cristo dá à vida um novo
horizonte e um rumo decisivo, superando o equívoco de que o cristianismo é uma ideia ou um código de ética. E aos que perguntam: “Mas como possibilitar o encontro com a Pessoa de
Jesus Cristo?” - o Papa responde com as palavras de seu mestre, Santo Agostinho - “Se vês a
caridade, vês a Trindade” (DCE,19). Na homilia da missa de início de seu pontificado disse:
Nós existimos para mostrar Deus aos homens. E só onde se vê Deus, é que começa
verdadeiramente a vida. Só quando encontramos em Cristo o Deus vivo, é que nós
conhecemos o que é a vida.(...) Não há nada mais belo do que ser-se apanhado, surpreendido
pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada mais belo do que conhece-lo e comunicar aos outros
a amizade com Ele.
Evangelizar, portanto, é uma ação arraigada na caridade, pois, segundo Bento XVI,
somente na caridade que emana de Deus encontra-se a “força propulsora principal” que dá
“substância à relação pessoal com Deus e com o próximo” (cf.CV,1). Deus está no princípio e no
fim de tudo aquilo que tem valor e redime: quer o mundo, quer a vida, quer a morte, quer o
presente, quer o futuro. (CV, 78). A caridade é tudo porque “da caridade de Deus tudo provém,
por ela tudo toma forma, para ela tudo tende” (CV, 2).
Não é por acaso, que a caridade é tema da primeira encíclica do pontificado de Bento
XVI. Nela o Papa “torna novamente visível o cerne do ser cristão e, assim, igualmente a
simplicidade do ser cristão” (Luz do Mundo, pg. 101). As Exortações Apóstólicas, Sacramentum
Caritatis e Verbum Domini apontam para Sagrada Escritura e para a Eucaristia como alimento
da caridade do cristão a fim de viver a comunhão plena com Deus no tempo rumo à comunhão
definitiva, eterna, que constitui a esperança cristã, explicitada na encíclica Spe Salvi.
Para Bento XVI, a característica de autenticidade da caridade é a verdade. A verdade é
para ele um tema muito caro. “Colaboradores da verdade” é o lema de seu episcopado e a
síntese de sua missão, do seu jeito de ser e de viver. Caridade e verdade são tema da Encíclica
sobre a doutrina social da Igreja, Caritas in Veritate. Mas ele não concebe a verdade como algo
que podemos possuir, mas como Alguém que é e nos possui: Jesus Cristo.
A “Nova Evangelização”, segundo Bento XVI, não é, de modo algum, como julgam
alguns, um “arrebanhamento”, uma intervenção com novos métodos mais requintados para
atrair imediatamente as grandes multidões que se afastaram da Igreja. Não é conquista de
terreno e domínio da Igreja católica. Não é busca de sucesso pastoral que procura apenas um grande número de pessoas que nos escutem. Não é arte retórica ou prudência pastoral. Não é
implementação de novas tecnologias para aumento de poder e extensão das instituições. Nem
é tampouco defesa de ideologias, de linhas, de siglas. Não é reorganização das estruturas
eclesiais ou dos ministérios eclesiais com ou sem hierarquia. Não visa uma Igreja que seja
produto de nossos planejamentos, planos de pastorais, setorizações e criação de numerosas
pastorais, pois não é pela motivação de uma ideologia e pelo ativismo das próprias forças que
se “constrói” o Reino de Deus. Se assim fosse, se permaneceria apenas num reino do próprio
homem, que não só não abre o acesso a Deus, mas reflete uma forma de “ateísmo religioso”. O
Reino de Deus é um dom que interpela o homem a uma resposta que o faz cooperador.
A caridade tem necessidade, sim, de organização. É laboriosa, vê e prevê todas as
possibilidades para servir com eficácia e eficiência. E, na missão da evangelização, todos os
métodos razoáveis e moralmente aceitáveis devem ser estudados e utilizados. Mas a
organização, as palavras e toda a arte da comunicação não podem conquistar a pessoa humana
naquela profundidade à qual deve chegar o Evangelho. Nós não podemos ganhar os homens.
Devemos obtê-los de Deus para Deus. Além do mais, o método, ou melhor, a pedagogia da
evangelização, não é algo exterior à pessoa. Ela já está inscrita no coração de cada ser humano
e se manifesta no desejo e na busca de Deus. O papel do agente de evangelização é despertar
tal desejo e fazer lhe companhia, mostrando, com seu jeito de viver e também explicitando com
a Palavra, o caminho para o encontro com Deus.
A “Nova Evangelização” é abraçar a missão da Igreja que nasce do Espírito Santo pelo
nós podemos entrar na atividade de Deus, na ação divina e colaborar com Ele. Basta recordar
que os apóstolos depois da Ascensão não iniciaram – como talvez teria sido normal –a criar e
organizar a Igreja futura. Esperaram a ação de Deus, através do Espírito Santo e deixaram se
envolver no seu movimento.
Nas entrelinhas dos ensinamentos de Bento XVI vão se delineando algumas linhas
obrigatórias que fazem com que a evangelização seja verdadeiramente nova, linhas que o Papa
chama de “leis” da “Nova Evangelização”, denominando-as de lei da expropriação, lei do grão
de trigo e lei do grão de mostarda.
A “Lei da expropriação” consiste não só em não pregar em seu próprio nome,
buscando sucesso e fama para si mesmo – este é o distintivo do anticristo – mas em pregar a
Palavra de Deus, escutada e absorvida numa intensa e constante vida de intimidade com Deus.
Portanto, falar de Deus quer dizer reservar espaço Àquele que no-lo faz conhecer, que nos
revela o seu rosto de amor. Quer dizer renunciar ao próprio eu, sem o quê amor gratuito de
Deus, a caridade, não pode de modo algum existir, mesmo que tal renuncia seja dolorosa.
A “Lei do grão de trigo” mostra que só o grão que cai na terra e morre, produz muito
fruto. Só quem doa a própria vida pode dar a vida a outros. Só quem perder a sua vida por
causa de Cristo do Evangelho, se torna apto a colaborar na salvação (cf. Mc 8,35). O grão de
trigo se desfaz para dar lugar à espiga. Para Bento XVI, abraçar a cruz de Cristo é fundamental,
pois Jesus não redimiu o mundo com palavras bonitas, mas com o seu sofrimento e a sua
morte. Sua paixão é a fonte inexaurível de vida para o mundo. A paixão dá força à sua palavra.
A sua vida inteira foi um caminho rumo à cruz, ascensão rumo à Jerusalém.
A “Lei do grão de mostarda” mostra a estrutura do agir divino, uma estrutura paradoxal
na qual o que é pequeno é grande, o que é grande, é pequeno. Basta ver como Aquele, que o
universo inteiro não pode conter, adquire morada no ventre de uma Virgem. A “Nova
Evangelização consiste em não contentar-se com o fato de que do grão de mostarda cresceu a
grande árvore da Igreja universal. Não pensar que é suficiente que nos seus ramos muito
diferentes as aves possam encontrar lugar (cf. Mc 4, 26-29), mas ousar de novo evangelizar,
com a humildade do pequeno grão, deixando para Deus quando e como crescerá. É superar a
tentação de se instalar na certeza da grande árvore que já existe ou na impaciência de possuuir
uma árvore maior, mais vital. É antes aceitar o mistério que a Igreja é ao mesmo tempo grande
árvore e pequeníssimo grão. Aceitar que na história da salvação é sempre Sexta-Feira Santa e,
ao mesmo tempo, Domingo de Páscoa.
O Cristianismo é sempre novo e atual. Mas sua “atualização” não significa reduzir a fé,
submetendo-a à moda dos tempos, ao que é mais agradável, àquilo que satisfaz a opinião
pública. Ao contrário, significa elevar o “hoje” do nosso tempo ao “hoje” de Deus. Somos nós que temos que nos adequar à altura do Evangelho e não o Evangelho que tem que se abaixar à
nossa mediocridade.
Os verdadeiros protagonistas da evangelização sempre foram e continuam sendo os
santos. Eles são, em particular, também os pioneiros e os impulsionadores da “Nova
Evangelização”. Atentos à criatividade que vem do Espírito Santo, eles mostram às pessoas,
indiferentes ou mesmo hostis, a beleza do Evangelho e da comunhão em Cristo; e convidam os
fiéis, por assim dizer, tíbios, a viverem a alegria da fé, da esperança e da caridade; a
redescobrirem o “gosto” da Palavra de Deus e dos Sacramentos, especialmente do Pão da Vida,
a Eucaristia. Neles, anúncio e vida entrelaçam-se. Com a vida mostram o realismo daquilo que
dizem com palavras.
A santidade não conhece barreiras culturais, sociais, políticas ou religiosas. Sua
linguagem - a do amor e da verdade - é entendida por todos e aproxima todos de Jesus Cristo,
fonte inesgotável de vida nova
REFERÊNCIAS
Citações de Bento XVI e do Cardeal Ratzinger
BENTO XVI, Deus Caritas Est: Carta Encíclica Sobre o Amor Cristão. São Paulo. Paulinas 2006.
_____.Sacramentum Caritatis: Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a Eucaristia fonte e
ápice da vida e da missão da Igreja. São Paulo. Paulinas 2007.
_____.Spe Salvi: Carta Encíclica Sobre a Esperança Cristã. São Paulo. Paulinas 2007.
_____.Caritas in veritate: Carta Encíclica Sobre o Desenvolvimento Humano Integral na
Caridade e na Verdade. São Paulo. Paulinas 2009.
_____.Verbum Domini: Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a Palavra de Deus na vida e na
missão da Igreja. São Paulo. Paulinas 2010.
_____.Porta fidei: Carta Apostólica sob forma de "Motu Proprio" com a qual se proclama o Ano
da Fé. São Paulo. Paulinas 2011.
_____.Ecclesia in Medio Oriente: Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a Igreja no Oriente
Médio, comunhão e testemunho. São Paulo. Paulinas