A espiritualidade do
matrimónio cristão
Homilia do Cardeal
James Francis Stafford na Peregrinação Aniversária de Julho em Fátima
.
A espiritualidade
do homem e da mulher casados significa que ambos vivem de acordo com o Espírito
Santo. A minha homilia vai explicar em que consiste esta vida conjugal de
acordo com o Espírito. Terá três partes: 1) a espiritualidade conjugal
fundamenta-se no mistério do Verbo Encarnado, Jesus Cristo, o Esposo da Igreja;
2) o arquétipo da espiritualidade conjugal encontra-se na relação entre Cristo
e a Igreja; 3) a realização concreta deste mistério encontra-se, por exemplo,
no matrimónio do primeiro casal a ser beatificado pela Igreja: Luigi e Maria
Quattrochi.
1) A
espiritualidade conjugal fundamenta-se no mistério do Verbo Encarnado, Jesus
Cristo, o Esposo da Igreja. A substância da primeira leitura, tirada do Livro
do Génesis, repete-se e aprofunda-se na leitura tirada da Epístola aos Efésios:
“E os dois serão uma só carne’. Este é um profundo mistério, e o que eu digo é
que se refere a Cristo e à Igreja”. Aqui, São Paulo esclarece o mistério da
comunhão de Cristo com os ‘santos’ da Igreja por meio de um sinal nupcial: o
ser ‘uma só carne’ do homem e da mulher. Ele mostra assim que a nupcialidade é
uma característica essencial do amor. E insiste em que o mistério da Encarnação
encerra uma lógica especial. Quer dizer que o Deus Invisível Se torna Visível
através de uma genuína manifestação de Si Mesmo no mundo do homem e em sua
história. O Primeiro Prefácio de Natal transmite lindamente a representação que
Deus faz de Si Mesmo na Encarnação: “Por meio do mistério do Verbo Encarnado, a
nova luz da Vossa claridade brilhou aos olhos da nossa mente, para que,
conhecendo nós Deus de modo visível, possamos ser arrebatados por este meio
para o amor de coisas invisíveis”.
2) O arquétipo da
espiritualidade conjugal encontra-se na relação entre Cristo e a Igreja. São
Paulo usa a imagem do amor de esposos em Génesis para ilustrar “o plano do
mistério escondido, durante séculos, em Deus” (Ef.3-9). Aqui ele fala do
sacramento nupcial entre Cristo e a Sua Igreja. Cristo é o Esposo e a Igreja a
Esposa. O mistério da lógica nupcial de Jesus e da Igreja presume que o homem e
a mulher cristãos juntos em matrimónio sacramental, como marido e mulher, estão
inseridos numa relação distinta e pessoal um com o outro. Nos escritos
proféticos, na literatura hebraica sobre a sabedoria e nos salmos, a
caracterização de Israel como ‘esposa’ manteve-se principalmente como imagem
ética e jurídica.
No Novo Testamento
esta caracterização é, acima de tudo, radicalmente alterada pela Encarnação do
Verbo: o carácter de ‘esposa’ é agora baseado inteiramente no ‘ser uma só
carne’ do Verbo Encarnado (“Uma só pessoa em cada uma das naturezas. Una
persona in utraque natura”-Santo Agostinho). Santo Agostinho insiste em que a
natureza humana foi assumida pela união pessoal com o Verbo Eterno no mesmo
instante em que foi criada. A Sua natureza humana foi criada pela própria
assunção (ipsa assumptione) de tal modo que “desde que Ele começou a ser homem,
nenhuma outra coisa a não ser o Filho de Deus começou a ser homem”.
Assim a
Igreja/Esposa encontra a sua origem e identidade na natureza humana de Cristo.
Porque o Verbo se identifica com o servo humano cuja natureza Ele assumiu, o
sujeito ‘Igreja/Esposa’, juntamente com todos os baptizados, que recebem cada
um a revelação de um modo próprio a cada um, deve necessariamente realizar uma
encarnação análoga à Encarnação do Verbo de Deus.
Na primeira leitura
ouvimos que no princípio da história humana existiu uma criatura de uma
complementaridade única: um homem e uma mulher. Assim o dado original humano
não era a identidade, mas a relação. Quando Adão foi apresentado a Eva, ele viu
beleza, verdade e bondade nela, e por isso cantou a primeira canção de amor:
“Esta é finalmente osso dos meus ossos e carne da minha carne; ela chamar-se-á
Mulher porque foi tirada do Homem”.
Por isso o homem
não se deve resignar a um universo surdo à sua música e indiferente aos seus
anseios, aos seus sofrimentos ou mesmo aos seus crimes. Esse universo não pode
ser definido em termos de progresso material, uma vez que estamos a descobrir,
para nossa tristeza e desalento, que o preço do progresso é a morte do
espírito. O mundo não é simples fruto da evolução; não se pode basear na
sobrevivência do mais forte, na economia globalizada. O universo não é tosco e
sem esperança; não se parece mais com um campo de batalha do que com uma
orquestra. O facto de haver um homem e uma mulher desde o princípio basta para
crer na visão nupcial do fim que realmente é o princípio: “Eu vi a cidade
santa, a Nova Jerusalém, que descia do Céu de junto de Deus, ataviada como
esposa adornada para o seu esposo, e ouvi uma voz alta que vinha do trono e
dizia: ‘Eis a morada de Deus entre os homens’” (Apoc.21,2-3).
3) A realização
concreta deste mistério encontra-se, por exemplo, no matrimónio do primeiro
casal a ser formalmente beatificado pela Igreja: Luigi e Maria Quattrocchi.
Vemos esta realidade do significado do começo realizado no matrimónio cristão.
Estou a pensar na bondade, verdade e beleza reveladas na relação entre o Beato
Luigi Beltrame Quattrocchi e a Beata Maria Beltrame Quattrocchi. Em 2001 a
Igreja Católica Romana beatificou o primeiro casal, em toda a sua história. A
Igreja achou que o casal Quattrocchi era uma extraordinária testemunha do
profundo mistério que é o sacramento do matrimónio. E assim este casal italiano
dos nossos tempos foi promovido ao grau de “beato” – apenas a um passo formal
da santidade – depois de ter sido julgado modelo da ‘espiritualidade cristã’,
vivendo heroicamente o matrimónio e a família.
O Papa João Paulo
II declarou aquando da sua beatificação em 2001: “Queridas famílias, hoje temos
a singular confirmação de que o caminho da santidade, seguido juntos como
casal, é possível, é lindo, é extraordinariamente frutuoso e é fundamental para
o bem da família, da Igreja e da sociedade”. Ele proferiu palavras especiais de
encorajamento para os casais que experimentam o drama da separação, a doença ou
a morte dum filho. O único casal antes deste a quem foi dado tal honra foram os
mártires Aquila e Prisca, os quais se tornaram santos nos primórdios do
Cristianismo, antes de ser estabelecido o processo formal de beatificação.
Os esposos Beltrame
Quattrocchi nasceram ambos na década de 1880/89. Casaram-se em 1905 e passaram
toda a sua vida em Roma. Tiveram quatro filhos, dos quais três se tornaram
religiosos. Os dois rapazes foram ordenados sacerdotes. Uma das raparigas
fez-se freira. Os dois sacerdotes concelebraram com o Sumo Pontífice a Missa de
beatificação de seus pais. O quarto filho também participou na Santa Missa. Se
o quarto filho, o mais novo, tivesse entrado para a vida religiosa, Luigi e
Maria haviam decidido que eles mesmos entrariam para a vida consagrada. Houve
jornais que relataram que os filhos disseram que o casal decidira, ao fim de
vinte anos, dormir em camas separadas, vivendo como irmãos os restantes 26
anos.
Luigi morreu em
1951; era advogado e trabalhou no governo e em bancos, sendo ainda muito activo
em vários grupos católicos. Em 1939, Dino Grandi, o ministro italiano da
Justiça no regime de Mussolini, ofereceu a Luigi o alto cargo de Procurador
Geral do Estado Italiano, mas ele recusou, para evitar ficar associado ao governo
fascista.
A esposa morreu em
1965; era professora e escritora. Durante a Primeira Guerra Mundial confortou
soldados. Mais tarde estudou enfermagem e acompanhava inválidos em peregrinação
a santuários, como Lourdes, França.
“A nossa família
era uma família normal que tentava viver os diversos relacionamentos num plano
de alta espiritualidade”, disse Dom Tarcísio Beltrame Quattrocchi, um dos
quatro filhos do casal, numa entrevista. O casal, ao princípio, apoiava o
regime do ditador Mussolini, mas mais tarde rejeitou o fascismo e abriu as
portas de sua casa a membros da resistência. Por vezes emprestava as vestes
clericais de seus filhos sacerdotes para ajudar esses membros da resistência a
evitarem captura pelos ocupantes Nazis. Registos detalhados das beatificações
só começaram a ser mantidos há cinco séculos. Luigi e Maria Beltrame
Quattrocchi tornaram-se, respectivamente, no 1.273º e 1.274º católicos a serem
beatificados pelo Sumo Pontífice.
À luz do que fica
aqui dito, eu desejo mencionar explicitamente aquela característica do
matrimónio cristão que é, em certo sentido, como escreveu o Cardeal Angelo
Scola, fundamental para o laço matrimonial que une homem e mulher no vínculo
nupcial: a sua indissolubilidade. Uma das visões de Ezequiel (37-15 & ss)
tem sido fundamental para o meu entendimento do matrimónio. Trata-se do sinal
dos paus que Deus torna milagrosamente num só. Esta acção divina significa o
milagre que Deus opera ao unir de novo Israel e Judá numa só nação. Durante
décadas esta visão tem sido para mim a interpretação fundamental da comunhão
indissolúvel de marido e mulher, concedida por Deus no matrimónio. O matrimónio
sacramental é indissolúvel apenas porque é participação na total e irrevogável
comunhão de Jesus, o Esposo, com a Igreja, Sua Esposa.
Para o homem e a
mulher, que se unem em matrimónio cristão, as implicações são claras. Ambos
devem empenhar-se em transfigurar aquilo que ao princípio é primariamente um
amor de apego físico, o eros, naquela espécie de amor que reconhece ser agarrado
por e transformado no amor ‘agape’ de Deus, aquele amor que se esvazia de si
mesmo para receber o outro.
E vou terminar com
aquele magnífico entendimento do que é realmente o matrimónio sacramental
manifestado pelo Papa Bento XVI. Escreve ele em sua Encíclica ‘Deus Caritas
Est’:”Do ponto de vista da criação, o ‘eros’ aponta ao homem o caminho do
matrimónio, um vínculo único e definitivo; assim e só assim é que ele cumpre o
seu mais profundo desígnio. Correspondendo a um Deus único temos um matrimónio
monógamo. O matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone
da relação entre Deus e Seu povo e vice-versa. O modo como Deus ama torna-se a
medida do amor humano”(12).
Cardeal J. Francis
Stafford, Penitenciário-mor
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