Quarta-feira, 7 de Novembro de 1979
A unidade original do homem e da mulher na humanidade
1. As palavras do livro do Gênesis Não é conveniente que o homem esteja só (1) são quase um prelúdio da
narrativa da criação da mulher. Com esta narrativa, o sentimento da solidão original entra a fazer parte do
significado da unidade original, cujo ponto-chave parecem ser precisamente as palavras de Gênesis 2, 24, a
que se refere Cristo na sua conversa com os fariseus: O homem deixará o pai e a mãe, e unir-se-á à sua
mulher, e serão os dois uma só carne (2). Se Cristo, referindo-se ao «princípio», cita estas palavras,
convém-nos precisar o significado dessa unidade original, que mergulha as raízes no fato da criação do
homem como macho e fêmea.
A narrativa do capítulo primeiro do Gênesis não conhece o problema da solidão original do homem: o
homem, de fato, desde o princípio é «macho e fêmea». O texto javista do capítulo segundo, pelo contrário,
autoriza-nos em certo modo a pensar primeiro, somente no homem enquanto, mediante o corpo, pertence
ao mundo visível, mas ultrapassando-o; depois, faz-nos pensar no mesmo homem, mas através da
duplicidade do sexo. Corporeidade e sexualidade não se identificam completamente. Embora o corpo
humano, na sua constituição normal, traga em si os sinais do sexo e seja, por sua natureza, masculino ou
feminino, todavia o fato de o homem ser «corpo» pertence à estrutura do sujeito pessoal mais
profundamente que o fato de ele ser na sua constituição somática também macho ou fêmea. Por isso, o
significado da solidão original, que pode referir-se simplesmente ao «homem», é substancialmente anterior
ao significado da unidade original; esta última, de fato, baseia-se na masculinidade e na feminilidade, quase
como sobre duas diferentes «encarnações», isto é, sobre dois modos de «ser corpo» do mesmo ser
humano, criado à imagem de Deus (3).
2. Segundo o texto javista, no qual a criação da mulher foi descrita separadamente (4), devemos ter diante
dos olhos, ao mesmo tempo, aquela «imagem de Deus» da primeira narrativa da criação. A segunda
narrativa conserva, na linguagem e no estilo, todas as características do texto javista. O modo de narrar
concorda com o modo de pensar e de falar da época a que o texto pertence. Pode-se dizer, segundo a
filosofia contemporânea da religião e da linguagem, que se trata duma linguagem mítica. Neste caso, na
verdade, o termo «mito» não designa conteúdo fabuloso, mas simplesmente um modo arcaico de exprimir
um conteúdo mais profundo. Sem qualquer dificuldade, sobre o estrato da antiga narração, descobrimos
aquele conteúdo, verdadeiramente admirável no que diz respeito às qualidades e à condensação das
verdades, que nele estão encerradas. Acrescentemos que a segunda narrativa da criação do homem
conserva, até certo ponto, uma forma de diálogo entre o homem e Deus-Criador, o que se manifesta
sobretudo naquele período em que o homem ('adam) é definitivamente criado como macho e fêmea
('is-'issah) (5). A criação efetua-se quase contemporaneamente em duas dimensões; a ação de Deus-Javé
A unidade original do homem e da mulher na humanidade
1. As palavras do livro do Gênesis Não é conveniente que o homem esteja só (1) são quase um prelúdio da
narrativa da criação da mulher. Com esta narrativa, o sentimento da solidão original entra a fazer parte do
significado da unidade original, cujo ponto-chave parecem ser precisamente as palavras de Gênesis 2, 24, a
que se refere Cristo na sua conversa com os fariseus: O homem deixará o pai e a mãe, e unir-se-á à sua
mulher, e serão os dois uma só carne (2). Se Cristo, referindo-se ao «princípio», cita estas palavras,
convém-nos precisar o significado dessa unidade original, que mergulha as raízes no fato da criação do
homem como macho e fêmea.
A narrativa do capítulo primeiro do Gênesis não conhece o problema da solidão original do homem: o
homem, de fato, desde o princípio é «macho e fêmea». O texto javista do capítulo segundo, pelo contrário,
autoriza-nos em certo modo a pensar primeiro, somente no homem enquanto, mediante o corpo, pertence
ao mundo visível, mas ultrapassando-o; depois, faz-nos pensar no mesmo homem, mas através da
duplicidade do sexo. Corporeidade e sexualidade não se identificam completamente. Embora o corpo
humano, na sua constituição normal, traga em si os sinais do sexo e seja, por sua natureza, masculino ou
feminino, todavia o fato de o homem ser «corpo» pertence à estrutura do sujeito pessoal mais
profundamente que o fato de ele ser na sua constituição somática também macho ou fêmea. Por isso, o
significado da solidão original, que pode referir-se simplesmente ao «homem», é substancialmente anterior
ao significado da unidade original; esta última, de fato, baseia-se na masculinidade e na feminilidade, quase
como sobre duas diferentes «encarnações», isto é, sobre dois modos de «ser corpo» do mesmo ser
humano, criado à imagem de Deus (3).
2. Segundo o texto javista, no qual a criação da mulher foi descrita separadamente (4), devemos ter diante
dos olhos, ao mesmo tempo, aquela «imagem de Deus» da primeira narrativa da criação. A segunda
narrativa conserva, na linguagem e no estilo, todas as características do texto javista. O modo de narrar
concorda com o modo de pensar e de falar da época a que o texto pertence. Pode-se dizer, segundo a
filosofia contemporânea da religião e da linguagem, que se trata duma linguagem mítica. Neste caso, na
verdade, o termo «mito» não designa conteúdo fabuloso, mas simplesmente um modo arcaico de exprimir
um conteúdo mais profundo. Sem qualquer dificuldade, sobre o estrato da antiga narração, descobrimos
aquele conteúdo, verdadeiramente admirável no que diz respeito às qualidades e à condensação das
verdades, que nele estão encerradas. Acrescentemos que a segunda narrativa da criação do homem
conserva, até certo ponto, uma forma de diálogo entre o homem e Deus-Criador, o que se manifesta
sobretudo naquele período em que o homem ('adam) é definitivamente criado como macho e fêmea
('is-'issah) (5). A criação efetua-se quase contemporaneamente em duas dimensões; a ação de Deus-Javé
ao criar desenvolve-se em correlação com o processo da consciência humana.
3. Assim pois, Deus-Javé diz: Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar
semelhante a ele (6). E ao mesmo tempo o homem confirma a própria solidão (7). A seguir lemos: Então o
Senhor Deus adormeceu profundamente o homem; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das costelas, cujo
lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até
ao homem (8). Tomando em consideração o carácter próprio da linguagem, é preciso antes de tudo
reconhecer que muito nos faz pensar aquele torpor do Gênesis, no qual, por obra de Deus-Javé, o homem
cai em preparação para o novo ato criador. Sobre o fundo da mentalidade atual habituada — graças à
análise do subconsciente — a ligar ao mundo do sono conteúdos sexuais, aquele torpor pode suscitar uma
associação particular Todavia a narrativa bíblica parece ir além do subconsciente humano. E se admitimos
uma significativa diversidade de vocabulário, podemos concluir que o homem ('adam) cai naquele «torpor»
para acordar «macho» e «fêmea». De fato, pela primeira vez encontramos em Gén. 2, 23 a distinção 'is
-'issah. Talvez portanto a analogia do sono indique aqui não tanto um passar da consciência à
subconsciência, quanto um especifico regresso ao não-ser (o sono tem em si um elemento de
aniquilamento da existência consciente do homem), ou seja, ao momento que antecede a criação, para que
dele, por iniciativa criadora de Deus, o «homem» solitário possa ressurgir na sua dupla unidade de macho e
fêmea (10).
Seja como for, à luz do contexto de Gén. 2, 18-20 nenhuma dúvida há de o homem cair naquele «torpor»
com o desejo de encontrar um ser semelhante a si. Se podemos, por analogia com o sono, falar aqui
também de sonho, devemos dizer que este arquétipo bíblico nos permite admitir, como conteúdo daquele
sonho, um «segundo eu», também ele pessoal e igualmente relacionado com o estado de solidão original,
isto é, com todo aquele processo de estabilização da identidade humana relativamente ao conjunto dos
seres vivos (animalia), enquanto é processo de «diferenciação» entre o homem e tal ambiente. Deste modo,
o círculo da solidão do homem-pessoa quebra-se, porque o primeiro «homem» desperta do sono como
«macho e fêmea».
4. A mulher é feita «com a costela» que Deus-Javé tirara ao homem. Considerando o modo arcaico,
metafórico e imaginoso, de exprimir o pensamento, podemos estabelecer tratar-se aqui de homogeneidade
de todo o ser de ambos; tal homogeneidade diz respeito sobretudo ao corpo, à estrutura somática, e é
confirmada também pelas primeiras palavras do homem à mulher recém-criada: Esta é realmente o osso
dos meus ossos e a carne da minha carne (Gén. 2, 23)(11). Apesar disso, as palavras citadas referem-se
também à humanidade do homem-macho. Devem ler-se no contexto das afirmações feitas antes da criação
da mulher, nas quais, embora não existindo ainda a «encarnação» do homem, ela é definida como «auxiliar
semelhante a ele» (cfr. Gén. 2, 18 e 2, 20)(12). Assim pois, a mulher foi criada, em certo sentido, sobre a
base da mesma humanidade. A homogeneidade somática, não obstante a diversidade da constituição ligada
à diferença sexual, é tão evidente que o homem (macho), despertando do sono genético, a exprime
imediatamente, ao dizer: Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á
mulher, visto ter sido tirada do homem (13). Deste modo o homem (macho) manifesta pela primeira vez
alegria e até exaltação, de que anteriormente não tinha motivo, por causa da falta dum ser semelhante a si.
A alegria para o outro ser humano, para o segundo «eu», domina nas palavras do homem (macho)
pronunciadas à vista da mulher (fêmea). Tudo isto ajuda a estabelecer o significado pleno da unidade
original. Poucas são aqui as palavras, mas cada uma tem grande peso. Devemos portanto ter em conta — e
fá-lo-emos em seguida — o fato de aquela primeira mulher, «criada com a costela tirada ... ao homem»
(macho), ser imediatamente aceita como auxiliar semelhante a ele.
A este mesmo tema, quer dizer, ao significado da unidade original do homem e da mulher na humanidade,
voltaremos ainda na próxima meditação.
Notas
1. Gén. 2, 18.
2. Mt. 19, 5.
3. Gén. 1, 27.
4. Gén. 2, 21-22
5. O termo hebraico 'adam exprime o conceito colectivo da espécie humana, isto é, o homem que
representa a humanidade; (a Bíblia define o indivíduo usando a expressão «filho do homem», ben-'adam). A
contraposição 'is-'issa sublinha a diversidade sexual (como em grego anér-gyné).
Depois da criação da mulher, o texto bíblico continua a chamar ao primeiro homem 'adam (com o artigo
definido), exprimindo assim a sua «corporate personality»), pois se tornou «pai da humanidade», seu
progenitor e representante, como depois Abraão foi reconhecido como «pai dos crentes» e Jacob foi
identificado com Israel-Povo Eleito.
6. Gén. 2, 18.
7. Gén. 2, 20.
8. Gén. 2, 21-22.
9. O torpor de Adão (em hebraico tardemah) é um sono profundo (latim sopor; inglês sleep), em que o
homem cai sem conhecimento ou sonhos (A Bíblia tem outro termo para definir o sonho: halóm); cfr. Gén.
15, 12; 1 Sam. 26, 12).
Freud examina o conteúdo dos sonhos (latim somnium, inglês dream), que formando-se com elementos
psíquicos «recalcados no subconsciente» permitem, segundo a sua teoria, fazer surgir deles os conteúdos
incônscios, que seriam, em última análise, sempre sexuais.
Esta ideia é naturalmente de todo alheia ao autor bíblico.
Na teologia do autor javista, o torpor, em que Deus fez cair o primeiro homem, sublinha a exclusividade da
ação de Deus na obra da criação da mulher; o homem não teve nela nenhuma participação consciente.
Deus serve-se da sua «costela» só para acentuar a natureza comum do homem e da mulher.
10 «Torpor» (tardemah) é o termo que aparece na Sagrada Escritura, quando durante o sono ou diretamente depois dele hão-de dar-se acontecimentos extraordinários (cfr. Gén. 15, 12; 1 Sam. 26, 12; Is.
29, 10; Job 4, 13; 33, 15). Os Setenta traduzem tardemah por ekstasis (êxtase).
No Pentateuco tardemah aparece ainda uma vez num contexto misterioso: Abraão, por ordem de Deus,
preparou um sacrifício de animais, excluindo as aves de rapina. «Ao pôr do sol, apoderou-se dele um
profundo sono (torpor); ao mesmo tempo sentiu-se apavorado e foi envolvido por densa trevas» (Gén. 15,
12). Precisamente então começa Deus a falar e conclui com ele uma aliança, que é o ponto mais alto da
revelação comunicada a Abraão.
O autor bíblico admite no primeiro homem certo sentimento de carência e solidão («não é conveniente que o
homem esteja só»; «não encontrou para si uma auxiliar adequada»), de carência e solidão mas não de
medo. Talvez esse estado provoque «um sono causado pela tristeza», ou talvez, como em Abraão «por um
pavor de não ser»; como no limiar da obra da criação «a terra era informe e vazia. As trevas cobriam o
abismo» (Gén. 1, 2).
Seja como for, segundo ambos os textos, em que o Pentateuco, ou melhor, o Livro do Gênesis, fala do sono
profundo (tardemah), realiza-se uma especial ação divina, isto é, uma «aliança» cheia de consequências
para toda a história da salvação: Adão dá início ao gênero humano, Abraão ao Povo Eleito.
11. É interessante notar que para os antigos Sumérios o sinal aunei forme para indicar o substantivo
«costela» era o mesmo que indicava a palavra «vida». Quanto, portanto, à narrativa javista, segundo certa
interpretação de Gén. 2, 21, Deus cobre a costela de carne (em vez de cicatrizar a carne no seu lugar) e
deste modo «forma» a mulher, que tem origem da «carne e dos ossos» do primeiro homem (macho).
Na linguagem bíblica esta é uma definição de consanguinidade ou incorporação na mesma descendência
(por exemplo, cfr. Gén. 29, 14): a mulher pertence à mesma espécie do homem, distinguindo-se dos outros
seres vivos anteriormente criados.
Na antropologia bíblica os «ossos» exprimem um elemento importantíssimo do corpo; dado que para os
Hebreus não havia distinção clara entre «corpo» e «alma» (o corpo era considerado como manifestação
exterior da personalidade), os «ossos» significavam simplesmente, por sinédoque, o «ser» humano (cfr., por
exemplo, Sl. 139, 15: «não te estavam escondidos os meus ossos»).
Pode-se portanto entender «osso dos ossos», em sentido relacional, como o «ser vindo do ser»; «carne
vinda da carne» significa que, havendo embora características físicas diversas, a mulher apresenta a
mesma personalidade que o homem possui.
No «canto nupcial» do primeiro homem, a expressão «osso dos ossos, carne da carne» é forma de
superlativo, reforçado pela tríplice repetição: «esta», «ela», «a».
12. É difícil traduzir exatamente a expressão hebraica cezes kenedô, que é traduzida de maneiras diversas
nas línguas europeias, por exemplo:
latim: «adiutorium ei conveniens sicut oportebat iuxta eum»
alemão: «eine Hilfe ..., die ihm entspricht»
francês: «égal vis-à-vis de lui»
italiano: «un aiuto che gli sia simile»
espanhol: «como él que le ayude»
inglês: «a helper fit for him»
polaco: «odopowicdnia alia niego pomoc».
Como o termo «auxiliar» parece sugerir o conceito de «complementaridade» ou melhor de
«correspondência exata», o termo «semelhante» relaciona-se sobretudo com o de «semelhança», mas em
sentido diverso da semelhança do homem com Deus.
13. Gén. 2, 23.
Aos jovens Casais
E agora dirijo-me a vós, jovens casais presentes nesta Audiência, para vos apresentar os meus paternais
votos de santa e fecunda união conjugal.
Como tive ocasião de reafirmar no recente encontro com os representantes do "Centro di collegamento tra
gruppi di ricerca", o matrimônio, precisamente porque inclui uma especial participação no amor nupcial de
Cristo à sua Igreja, do qual é sacramento, isto é sinal eficaz, é uma totalidade onde se encontram todas as
componentes da pessoa; uma unidade profundamente pessoal, que exige a indissolubilidade e a fidelidade
recíproca definitiva, e se abre à fecundidade.
Oxalá o vosso amor tenha este significado novo do cristianismo que o purifica e consolida. Com a minha
Bênção Apostólica para vós e para todos os que vos são queridos.
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