segunda-feira, 9 de junho de 2014

São João Paulo II: uma tocha de caridade

São João Paulo II: uma tocha de caridade

SÃO JOÃO PAULO II: UMA TOCHA DE CARIDAD
“AMOU ATÉ O FIM
Os últimos anos, os últimos meses, os últimos dias de João Paulo II, evidenciaram de uma maneira impressionante e crescente, aos olhos de todos, que aquele ancião doente, combalido, encurvado, sofredor, cada vez mais limitado, depois de ter dado a vida inteira ao serviço de Deus e de seus irmãos os homens, estava disposto a entregar até a última gota, até o último alento, enquanto Deus não viesse buscá-lo.
Seguindo as pegadas de Cristo, decidiu-se a levar a sua caridade, o seu amor, até ao extremo, como Jesus, de quem diz o Evangelho que, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (Jo 13, 1).
Ele próprio deixara  escritas no seu testamento, no ano 2000, as seguintes palavras: «Segundo os desígnios da Providência, foi-me concedido viver no difícil século que está ficando no passado e agora, no ano em que a minha vida alcança os oitenta anos, é necessário perguntar-me se não chegou a hora de repetir com o bíblico Simeão:Nunc dimittis » [refere-se à oração do ancião Simeão que, no dia da apresentação do Menino Jesus no Templo, diz a Deus que agora já o pode levar em paz deste mundo: cfr. Luc 2, 29].
O escrito continua: «No dia 13 de maio de 1981, o dia do atentado contra o Papa durante a audiência geral na Praça de São Pedro, a Divina Providência me salvou milagrosamente da morte. O mesmo único Senhor da vida e da morte me prolongou esta vida e, em certo sentido, me voltou a dar de novo. A partir desse momento, pertence-lhe ainda mais [...]. Peço-lhe que me chame quando Ele quiser. “Se vivemos, vivemos para o Senhor; e se morremos, morremos para o Senhor… Somos do Senhor (Cf. Rom 14,8)”. Espero que até que possa completar o serviço petrino [de sucessor de Pedro] na Igreja, a Misericórdia de Deus me dê forças para este serviço».
E assim foi. A sua entrega foi como a de uma lamparina que se extingue só depois de consumir-se inteiramente. Mas, à medida em que sua vida se ia apagando, o seu amor resplandecia com mais força. Quem não se lembra do seu derradeiro esforço por se comunicar, por levar a Palavra aos fiéis, naquele dia de abril em que, o rosto emoldurado pela janela de onde tinha falado tantas vezes, só pôde abrir a boca para exprimir silenciosamente a dor, a agonia, as lágrimas silenciosas de um pastor esgotado, que já não mais conseguia articular uma palavra?
Deixou-nos assim um reflexo extraordinário da imagem do Bom Pastor, que dá a vida pelas suas ovelhas (Jo 10, 11). Na homilia das exéquias, o Cardeal Ratzinger recordava essa figura evangélica em que João Paulo II ficava retratado: «Foi sacerdote até o final, porque ofereceu a sua vida a Deus por suas ovelhas e por toda a família humana, numa entrega cotidiana ao serviço da Igreja e, sobretudo, nas duras provas dos últimos meses. Assim se converteu em uma só coisa com Cristo, o Bom Pastor que ama as suas ovelhas».
“AQUELE QUE DÁ A VIDA POR SEUS AMIGOS”
Eis aqui outras palavras de Cristo, na Última Ceia, que ajudam a captar essa tocha de caridade: Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos (Jo 15, 15).
Cristo deu a vida com a sua dedicação infatigável aos homens – Não vim para ser servido, mas para servir e dar a vida para salvação de muitos (cfr. Mat 20, 28) –, mas a sua entrega chegou ao ápice no sacrifício da Cruz. Com efeito, foi na Cruz, quando já do corpo dilacerado escorriam as últimas gotas do sangue derramado para a remissão dos pecados (Mt 26, 28), que Jesus pôde dizer: Tudo está consumado! (Jo 19, 30).
Nos últimos anos,  João Paulo II foi-se configurando, cada vez mais plenamente, com Jesus sofredor, com a sua Paixão e Morte, viveu uma intensa “consciência” do valor salvador da Cruz , que ele sempre amara: «Nunca me aconteceu – escrevia – de colocar com indiferença a minha Cruz peitoral de bispo. É um gesto que sempre acompanho com a oração. Há mais de quarenta e cinco anos que a Cruz pousa em meu peito, ao lado do meu coração. Amar a Cruz quer dizer amar o sacrifício»[1].
À medida que os seus sofrimentos físicos foram aumentando, até envolvê-lo, por assim dizer, como uma espessa malha torturante, o Papa foi compreendendo com mais profundidade que a sua dor, em união com a de Jesus crucificado, seria, por desígnio divino, a nova forma de cumprir a missão de pastor de um rebanho imenso, espalhado pelo mundo, entre perigos, incertezas e ameaças.
Deixemos a palavra, mais uma vez, ao cardeal Ratzinger, na homilia das exéquias de João Paulo II: «Precisamente nesta sua comunhão com o Senhor que sofre, o Papa anunciou, infatigavelmente e com renovada intensidade, o Evangelho, o mistério do amor até o fim». E, neste ponto, o cardeal citava palavras do próprio João Paulo II no seu último livro “Memória e Identidade” (págs. 189-190): «Cristo, sofrendo por todos nós, conferiu um novo sentido ao sofrimento, introduziu-o em uma nova dimensão, em uma nova ordem: a do amor… É o sofrimento que queima e destrói o mal com a chama do amor, e até do pecado tira um florescimento multiforme de bem»”.
É tocante perceber como João Paulo II ia crescendo nessa profunda visão de fé. Após a queda no banheiro, em 28 de abril de 1994, com graves fraturas, o Papa sofreu uma nova intervenção cirúrgica na Policlínica Gemelli, que, no entanto, não pôde resolver satisfatoriamente o problema. Passou, então, a usar bengala. As dores não cederam, ao contrário. Os movimentos tornaram-se mais trôpegos e penosos.
Quando voltou a dirigir-se aos fiéis presentes na Praça de São Pedro, à hora do Ângelus, em 29 de maio, agradeceu publicamente a Cristo e Maria o “dom do sofrimento”, que via como “um dom necessário”. Explicava-lhes, falando especialmente às famílias: «Meditei vezes sem conta sobre tudo isso durante a minha estadia no hospital… Compreendi que tenho de conduzir a Igreja de Cristo até este terceiro milênio através da oração, de vários programas de atuação, mas vi que não é suficiente: tem de ser guiada pelo sofrimento, pelo ataque de há treze anos [o atentado de Ali Agca] e por este novo sacrifício [...]. O Papa tinha de ser atacado, o Papa tinha de sofrer, de modo que todas as famílias e o mundo possam ver que existe um Evangelho mais grandioso: o Evangelho do sofrimento, pelo qual o futuro é preparado, o terceiro milênio das famílias, de cada família e de todas as famílias» [2]
No dia primeiro de abril, pressentindo-se um próximo desenlace, o Arcebispo Angelo Comastri, Vigário para o Estado da Cidade do Vaticano e grande amigo do Papa, foi chamado com urgência ao quarto do pontífice agonizante. Diante dele, como comentou depois pela Rádio vaticana, experimentou uma emoção indescritível: «Ao vê-lo no leito do sofrimento, disse-lhe: “És verdadeiramente o Vigário de Cristo até o final, na paixão que estás vivendo, de modo tão edificante que comove o mundo”». «O Papa – continuou a narrar –, com a sua dor, escreveu a encíclica mais bela da sua vida, fiel a Jesus até o final, a “encíclica nunca escrita”» [3].
A sua morte espantou o mundo, pois viu nela um “Evangelho da vida”. O Papa alegre, que amou entranhadamente a juventude, pouco antes de expirar soube que multidões de jovens rezavam e velavam a sua agonia ao pé da sua janela, e então disse, com um fio de voz apenas perceptível: «Vi ho cercato, adesso siete venuti da me, e per questo vi ringrazio» (“Eu procurei vocês, jovens, agora vocês vieram ter comigo; e por isso lhes dou as graças”). Foram as últimas palavras que pronunciou.
“A  MIM O FIZESTES”
A tocha ardente e clara do exemplo de caridade de João Paulo II ficaria incompleta se não acenássemos, pelo menos, a um dos empenhos mais característicos do seu pontificado: a veneração, o imenso respeito, o amor pela «dignidade do homem, de cada homem, de cada mulher». Extasiava-se ao pensar no «milagre da pessoa, da semelhança do homem com Deus Uno e Trino»[4]. Tinha assimilado plenamente as palavras de Cristo: Tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes (Mat 25, 40).
Daí a sua defesa vigorosa da vida, desde que começa a alvorecer recém-concebida, e a fortaleza com que se opôs a qualquer destruição ou rebaixamento do ser humano como se fosse um objeto, desde as manipulações genéticas e experiências destrutivas de embriões e fetos ao uso do corpo como mero instrumento de prazer, até a defesa da morte natural digna – de que deu exemplo com sua própria morte –, que rejeita como uma indignidade a eutanásia direta, expediente egoísta e cômodo de uma sociedade hedonista que só pensa em livrar-se de problemas do modo mais expeditivo.
Sofria ao constatar que, na sociedade materializada atual, «o homem ficou só», e que a sua liberdade divinizada, transformada num ídolo sem Deus, sem verdades nem valores firmes, acaba sendo uma fonte de «nefastas consequências morais, cujas dimensões são às vezes incalculáveis»[5].
Só sabia ver as pessoas, cada uma delas, sob a luz de Deus. «Eu simplesmente rezo por todos a cada dia. Basta encontrar uma pessoa, oro por ela, e isso facilita sempre o contato [...]. Sigo o princípio de acolher cada um como uma pessoa que o Senhor me envia e que, ao mesmo tempo, me confia» [6].
E quando se tratou de um assassino a soldo, que friamente fez tudo para matá-lo, que ficou frustrado ao ver que o Papa sobrevivia ao atentado e que jamais esboçou sequer um pedido de perdão? O seu amor não mudava. O valor que dava a cada pessoa humana não mudava, e até mesmo atingia o cume do amor, conseguindo perdoar de todo o coração, devolver bem por mal, amor por ódio, bondade por maldade. Desde o primeiro instante, após o atentado, João Paulo II perdoou Mehmet Ali Agca e rezou por ele. Voltou a dar o perdão publicamente, na primeira audiência que pôde ter com os fiéis. Foi visitá-lo na prisão e ofereceu-lhe seu abraço sincero. Várias vezes, como contava o secretário particular do Papa, Mons. Stanislaw Dziwisz, «recebeu a mãe e os familiares de Agca e perguntava frequentemente por ele aos capelães da prisão» [7].
Esta é, mais uma vez, a luz de Cristo, a tocha fascinante de amor cristão, irradiando sobre o mundo inteiro pelo exemplo, pela chama de amor de um homem de Deus: Senhor – perguntou a Jesus o “primeiro Pedro” –, quantas vezes devo perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes? Respondeu Jesus: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete»” (Mat 18, 21-22).
Trecho selecionado do livro de F Faus A força do exemplo.
[1]Levantai-vos! Vamos!, pág. 193
[2] Cfr. George Weigel, obra citada, pág. 582
[3] Revista Nuestro Tiempo, n. 610, abril 2005, págs. 38 e 39
[4] Levantai-vos! Vamos!, pág. 102
[5] Memória e identidade, citado, págs. 21 e 55
[6] Levantai-vos! Vamos!, págs. 76-77
[7] Apêndice de Memória e Identidade, pág. 185
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